O Conteúdo das Sentenças na Acção de Condenação à Prática de Acto Administrativo Devido: A Ampliação dos Poderes de Pronúncia do Juiz Administrativo e As Linhas Ténues de Separação entre o Estado de Direito Democrático e o Estado Judicial
A acção de condenação da Administração à prática de acto devido – “sede adequada à tutela das posições subjectivas de conteúdo pretensivo”[1], extraída “do modelo da “Verfpflichtungsklage” alemã” – constituiu marco indelével da evolução do Direito Administrativo nacional: foi, pois, através daquele instituto, que, desde a reforma de 2002, nos casos de omissão ou recusa da prática de certo acto administrativo, por parte da Administração, os particulares passaram a ter ao seu dispor uma “acção para a defesa de interesses próprios [perante a Administração]”[2] , cujo objecto “nunca é o acto administrativo (...), mas sim o direito do particular a uma determinada conduta da Administração, correspondente a uma vinculação legal de agir, ou de actuar de uma determinada maneira (que pode ter lugar mesmo no domínio da chamada discricionariedade)”[3].
Consagrada nos actuais artigos 66.º e seguintes do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (“CPTA”), a acção de condenação à prática de acto devido insere-se, da perspectiva dos juízes nacionais, no cógnito domínio dos “processos de geometria variável”[4], cabendo a sua apreciação aos “órgãos cuja posição funcional assegura a maior adequação e legitimidade para o exercício da função jurisdicional”[5] – os tribunais administrativos (artigos 202.º e 212.º/Constituição) –, por força do princípio da separação de poderes (artigos 111.º/Constituição da República Portuguesa, doravante, “Constituição” ou “CRP”; e 3.º/1/CPTA).
O juiz administrativo não tem, pois, diante de si, tarefa simples, podendo vir a deparar-se com duas espécies de situações, devidamente enunciadas no artigo 71.º/CPTA – i) aquelas em que está em causa a omissão ou recusa de praticar um acto administrativo de conteúdo (legalmente) vinculado “quanto à oportunidade como quanto ao modo de exercício”[6] (n.º 1); e ii) aquelas em que a Administração, apesar de vinculada quanto à prática do acto, tem “poderes de conformação do [seu] conteúdo”[7] (n.º 2).
Com efeito, se, relativamente aos primeiros casos, o juiz se limita a emitir “uma sentença de condenação que impõe à Administração a prática de um acto administrativo e com um determinado conteúdo”[8], quanto aos segundos o exercício do poder jurisdicional ingressa no âmbito da “zona cinzenta em que o exercício de uma função materialmente jurisdicional surge em ligação estreita com o exercício da função administrativa.”[9] – situação em que se torna “claro que o espaço de intervenção do juiz tem de ser menor do que o espaço de intervenção na actuação administrativa vinculada.”[10], sob pena de incorrer em eventual substituição da Administração, no exercício da função administrativa e violar, consequentemente, o princípio da separação e interdependência de poderes.
Suscita-se, assim, a questão: Será o regime ínsito no artigo 71.º/n.º 2 do CPTA "definitivo", ou deveremos temer eventuais perigos de “administrativização judicial”[11] e de reversão de alguns “traumas da infância” do Direito Administrativo, perante a possibilidade de ampliação dos poderes de pronúncia do juiz administrativo?
As situações de discricionariedade administrativa – a “liberdade conferida por lei à administração para que esta escolha entre várias alternativas de actuação juridicamente admissíveis”[12] (sempre limitada pelas regras de competência e os princípios gerais de Direito Administrativo), isto é, os casos em que “a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa” (artigo 71.º/n.º 2/CPTA) – derivam, fundamentalmente, da inexistência de uma única solução legal (ou seja, da pluralidade de actos administrativos que podem ser emitidos, por parte da Administração, para satisfazer a pretensão do particular interessado) ou da ausência de situações de “redução da discricionariedade a zero”: nestes casos, o tribunal fica adstrito a efectuar a “condenação genérica”[13] da Administração, não podendo “determinar o conteúdo do acto a praticar” (71.º/n.º 2/CPTA).
Cabe, assim, ao juiz administrativo, “determinar, em concreto, qual o âmbito e o limite das (...) escolhas administrativas [e, bem assim,] (...) indicar a ‘forma correcta’ de exercício do poder discricionário”[14], não apenas em sentido negativo – isto é, ditando à Administração os actos administrativos que não podem ser praticados, porque feridos de ilegalidade (efeito preclusivo) –, mas também positivamente – “pronunciando-se (...) sobre os termos em que a Administração deve definir o Direito através da prática do acto administrativo que lhe cumpra emitir”[15].
Assentando, fundamentalmente, na “ilimitada confiança na função jurisdicional e nas suas capacidades”[16], a delimitação positiva do modo de actuação da Administrativa acarreta, todavia, uma panóplia de problemas atinentes à “disfunção no sistema de repartição de competências”[17] entre os poderes administrativo e jurisdicional.
Com efeito, seja em casos em que o tribunal compele a Ordem dos Advogados a repetir o exame de uma candidata a inscrever-se definitivamente como advogada – invocando que “a recente evolução do direito administrativo tende a valorizar o princípio da plena jurisdição dos tribunais administrativos”[18] e (incorrendo, porventura, no controlo de mérito da actuação administrativa, vedado ao poder jurisdicional) que aquela é a solução mais adequada face às demais (v.g., a atribuição da cotação total de 1,5 valores da “questão do Grupo II da área de Prática I Processo Civil”) –, condena o Município de Silves ao “cabal cumprimento do julgado anulatório e da estricta observância do dever de acatamento da decisão judicial do TAF-L [Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé]”[19] – fundando-se nos artigos 205.º/n.ºs 2 e 3/CRP e 158.º/CPTA, no “princípio da autossuficiência executiva” (artigo 3.º/n.º 3/CPTA) e, primordialmente, no princípio da separação de poderes enquanto “referência e limite aos poderes de cognição dos tribunais (...) [e] ideia material de moderação, concertação e racionalidade da actuação dos poderes públicos e, bem assim, a uma estratégia funcional de eficiência e de responsabilidade” que “não implica, todavia, uma proibição absoluta ou sequer uma proibição-regra do juiz condenar, dirigir injunções ou orientações, intimar, sancionar, proibir ou impor comportamentos à Administração.” –, ou condena o Ministério da Economia “a praticar novo acto que considerasse elegível a sua candidatura ao SI Inovação”[20], para a construção de um novo forno túnel – estribando-se no “teor da candidatura” e na asserção de que “em sede de decisão de ‘elegibilidade’, a Administração dispunha de elementos factuais claros que lhe exigiam a ‘integração da candidatura na na tipologia da alínea b), do ponto 2, do Aviso’ (...) [e], ao não o fazer, errou na subsunção da candidatura ao respectivo e pertinente regime legal.”, o que permitiu asseverar que “estamos, assim, em pleno domínio da ‘legalidade’, cuja sindicância cabe, obviamente, ao poder judicial.”[21] –, é sempre suscitado o risco de “hipervalorização do papel do juiz (...) [que culmina na] ‘perversão do Estado de Direito em Estado Judicial’”[22] e no consequente retorno à “situação de pecado original do contencioso administrativo”[23].
O estádio hodierno de desenvolvimento da ciência jus administrativa é, assim, suficientemente elucidativo quanto às questões supra formuladas: os tribunais apenas poderão definir positivamente a actuação da Administração nos casos de “redução de discricionariedade a zero”; nos demais – estando em apreço a “atividade administrativa, amplamente “discricionária” (...), o que aqui inclui “discricionariedade optativa” e discricionariedade criativa”[24] – coarctar-se-ão tão-somente a “traçar os limites que o dever de não reincidir nas eventuais ilegalidade cometidas projecta sobre o re-exercício do poder, estabelecendo as modalidades de actuação que à Administração ficam vedadas”[25].
Em suma, qualquer expectativa futura de ampliação dos poderes de pronúncia não pode senão ser frustrada, caso se pretenda a conformidade do contencioso administrativo face ao princípio da separação e interdependência de poderes – não apenas “porque afinal se decidirá numa sede – agora no tribunal, no fundo – e ser-se-á responsável pela decisão noutra sede – a autoridade administrativa”[26], mas também, e sobretudo, porque “a modelação de efeitos pelo juiz, num exercício ponderativo de bens, interesses e valores, revela uma “carga” de intencionalidade dispositiva de factos que selecciona para tomar em ponderação”[27]; o que, não obstante traduza o comprometimento da função jurisdicional com a “justiça do bem-estar”, importa, indubitavelmente, riscos elevados de formulação de juízos subjectivos pelo aplicador da lei e a possível substituição da Administração no exercício das suas funções.
O aumento dos poderes de condenação do juiz administrativo não constitui, pois, mais do que “funesto perigo da precipitação”[28], perante o qual se poderá apenas responder com recuos; “pois não acontece tantas vezes que se recue por orgulho perante a vergonha de uma retratação e a confissão do erro irreflectido?”[29].
Manuel Barreto Gaspar, n.º 60830
Bibliografia:
Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, Lisboa, Almedina, 2004.
José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa – Lições, 16.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2018.
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, I, 1ª Edição, Lisboa, D. Quixote, Outubro de 2004.
Maria Francisca Portocarrero, “Reflexões Sobre os Poderes de Pronúncia do Tribunal num Novo Meio Contencioso: A acção para a Determinação da Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido na sua Configuração no Artº71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008.
Mário Aroso de Almeida e António Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª Edição, Lisboa, Almedina, 2017.
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 5ª Edição, Almedina, 2021.
Rita Calçada Pires, O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido: Desafiar a Modernização Administrativa?, Almedina, 2006.
Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, I, Lisboa, Almedina, Agosto de 2019, 3ª reimpr..
Vasco Pereira da Silva, Para Um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de Uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, Lisboa, Almedina, Fevereiro de 2005, reimpr..
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2013, reimpr..
Tomás Morus, A Utopia (‘De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia’), 17.ª Edição, Babel, 2018.
Jurisprudência:
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de Fevereiro de 2013 (Proc. N.º 06303/10), in http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/f507f9a64b82245c80257b1f00341023?OpenDocument&Highlight=0,jurisdição,plena,acto,devido.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 14 de Dezembro de 2016 (Proc. N.º 01368/14), inhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/928291c970ae50c98025808f003a715f?OpenDocument.
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de Junho de 2021 (Proc. N.º 01519/10.0BELRA), inhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/dd2cad9a0575cc4d80258706003f87eb?OpenDocument.
[1] D. Freitas do Amaral e M. Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, Lisboa, Almedina, 2004, p. 60.
[2] V. Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2013, reimpr., p. 385.
[3] Pereira da Silva, O Contencioso, pp. 384-385.
[4] M. Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 5ª Edição, Almedina, 2021, p. 104.
[5] M. Rebelo de Sousa e A. Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, I, Lisboa, D. Quixote, 1ª Edição, Outubro de 2004, pp. 130-131.
[6] Pereira da Silva, O Contencioso, p. 393.
[7] Aroso de Almeida, Manual, p. 105.
[8] Pereira da Silva, ob. cit., p. 393.
[9] Rebelo de Sousa e Salgado de Matos, Direito Administrativo, I, p. 131.
[10] R. Calçada Pires, O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido: Desafiar a Modernização Administrativa?, Almedina, 2006, p. 96.
[11] Calçada Pires, O Pedido, p. 132.
[12] Rebelo de Sousa e Salgado de Matos, ob. cit., p. 180.
[13] J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa – Lições, 16.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 203.
[14] Pereira da Silva, O Contencioso, pp. 392-393.
[15] Aroso de Almeida, Manual, p. 102.
[16] M. Francisca Portocarrero, “Reflexões Sobre os Poderes de Pronúncia do Tribunal num Novo Meio Contencioso: A acção para a Determinação da Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido na sua Configuração no Artº71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2008, p. 364.
[17] Francisca Portocarrero, “Reflexões”, in Boletim, p. 366.
[18] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA-Sul), de 21 de Fevereiro de 2013 (Proc. N.º 06303/10), p. 6, in http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/f507f9a64b82245c80257b1f00341023?OpenDocument&Highlight=0,jurisdição,plena,acto,devido.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 14 de Dezembro de 2016 (Proc. N.º 01368/14), parágrafos XIX-XXIV, inhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/928291c970ae50c98025808f003a715f?OpenDocument.
[20] Acórdão do STA, de 24 de Junho de 2021 (Proc. N.º 01519/10.0BELRA), parte III, parágrafo 1, inhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/dd2cad9a0575cc4d80258706003f87eb?OpenDocument.
[21] Acórdão STA, de 24 de Junho de 2021, parte III, parágrafo 4.
[22] Calçada Pires, O Pedido, citando P. Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Lisboa, Lex, 1995, p. 47.
[23] V. Pereira da Silva, Para Um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de Uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, Lisboa, Almedina, Fevereiro de 2005, reimpr., p. 135.
[24] Voto de Vencido do Juiz-Desembergador Paulo Pereira Gouveia, no Acórdão do TCA-Sul supra citado, de 21 de Fevereiro de 2013.
[25] M. Aroso de Almeida e A. Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª Edição, Lisboa, Almedina, 2017, p. 502.
[26] Francisca Portocarrero, Reflexões, p. 366.
[27] P. Otero, Manual de Direito Administrativo, I, Lisboa, Almedina, Agosto de 2019, 3ª reimpr., pp. 572-573.
[28] T. Morus, A Utopia (‘De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia’), 17.ª Edição, Babel, 2018, p. 81.
[29] Morus, idem.
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