A Legitimidade Ativa e a Ação Popular no Contencioso Administrativo

     No entendimento do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA em diante) a legitimidade é um pressuposto processual e não uma condição de procedência da ação, cuja titularidade se afere, portanto, por referência às alegações produzidas pelo autor. 

Para de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, possui legitimidade ativa “quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objeto da ação proposta ou apresente como em condições de nela figurar como autor”. [1]

A legitimidade constituí, no entendimento de VASCO PEREIRA DA SILVA, “o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às decisões dos tribunais”[2].

A legitimidade ativa vem regulada no art. 9.º  do CPTA, contudo, não se esgota aqui, porquanto resulta do critério plasmado no mesmo artigo, que este é derrogado por um amplo conjunto de soluções especiais que, noutros artigos, o próprio CPTA estabelece em função de diversos tipos especiais de pretensões, como os artigos 55.º,57.º, 73.º e 77-A.º. Assim sendo, posso inferir que o art. 9. n.º1 consagra um princípio geral de legitimidade ativa, consagrando expressamente para além da ação popular prevista no n.º2, o regime especifico aplicável à impugnação de atos administrativos. 

O art. 9.º n.º 2 contempla um critério autónomo de legitimação, prevê então o exercício da ação popular, destinada à defesa de interesses difusos, a que se reporta o art. 52.º n.º3 da CRP[3].

A ação popular é definida por Paulo Otero como “uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais”[4]

É importante referir que, quando o art. 9.º n.º 2 do CPTA diz “nos termos previstos na lei” é para a Lei 83/95 de 31 de agosto que remete, “Direito de Participação Procedimental e Ação Popular”. A ação popular administrativa aplica-se a todas as espécies processuais que integram o contencioso administrativo e pode ser utilizada para a pretensão de qualquer das providências judiciárias legalmente admissíveis. 

A ação popular não é, pois, um meio processual, mas sim uma forma de legitimidade que permite desencadear os diversos tipos de ações ou providências cautelares que se tornem necessárias à defesa dos interesses difusos. 

Em conformidade com o art. 2.º e art. 3.º da Lei 83/95 de 31 de agosto, são detentores do direito de ação popular, dispondo de legitimidade ativa para a defesa de interesses difusos, os “cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses” em causa, desde que preencham os requisitos mencionados no art.3.º da mesma lei, e ainda, as Autarquias Locais, “em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição”. 

Ao referir-se a “cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos”, sem qualquer outra especificação, a lei não exige, pois, para o exercício da ação popular por qualquer indivíduo, qualquer elemento de conexão ou qualquer apropriação individual do interesse lesado.

No que respeita às autarquias locais, o direito de ação popular encontra-se delimitado por referência “aos interessados que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição, o que faz supor que a Autarquia Local pode agir em defesa de interesses difusos nas mesmas condições em que o poderá fazer qualquer cidadão, desde que se trate de interesses que relevam no âmbito da respetiva área territorial, não se mostrando condicionada, nesse ponto, ao contrário do que sucede com as instituições associativas, por qualquer critério de competência funcional. 

No que se refere ao catálogo de bens ou valores cuja defesa pode ser objeto de ação popular, a enumeração constante do n. 2.º é meramente exemplificativa, como se depreende também do art. 52.º n.º 3 CRP que dá cobertura constitucional ao direito de petição e de ação popular. 

Tem-se entendido de modo geral na doutrina que a ação popular pode servir para propor ações de grupo ou class actions, para defender interesses coletivos e interesses individuais homogéneos. 

Para além da análise do art. 9. n.º 2, é ainda importante remeter para o art.55.º, nomeadamente o seu n.1.º alínea f) e o seu n. 2.º. A diferença entre ambos é que, enquanto que no primeiro se faz referência a uma ação popular de defesa de interesses difusos[5], no segundo, faz-se referência a uma ação popular de âmbito local. 

O art.55.ºn.º1 alínea f) reafirma a legitimidade das pessoas e entidades mencionadas no art. 9.º n.º 2 para impugnarem atos administrativos que ponham em causa os valores referidos nesse preceito, num propósito de completude. VASCO PEREIRA DA SILVA[6] considera como sendo uma ação popular genérica, de forma objetiva, onde visa defender a legalidade e o interesse público, no que concerne a valores e bens constitucionalmente protegidos, independentemente da possuírem interesse direito na demanda. 

O art. 55.º n.º 2, na linha da tradição legislativa portuguesa, prevê a ação popular corretiva, que pode ser exercitada por qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, para a impugnação de deliberações dos órgãos autárquicos na circunscrição e que se encontre recenseado. Trata-se de um meio de fiscalização cívica da gestão de autarquias, que visa unicamente as atuações ilegais praticadas sob a forma de ato administrativo em vista à reposição da legalidade objetiva, e que, por isso, surge enquadrada como uma modalidade de legitimidade ativa típica de ação impugnatória. VASCO PEREIRA DA SILVA considera, por ultimo que este artigo consagra  a clássica ação popular local ou autárquica, de profundas tradições no domínio do contencioso de impugnação de atos, criticando a redundância legislativa, indo buscar uma instituição às “brumas da memória”[7], indagando-se se ainda se justifica manter a dualidade de regimes de ação popular. 

    Concluo manifestando o meu entendimento, que vai no sentido convergente ao do legislador, que quis sempre acautelar a tutela de interesses difusos e coletivos, nomeadamente a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público. Para além disso, o facto de vivermos num estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa (art. 2.º da CRP), enfatiza a necessidade e coerência de adotar atos legislativos desta natureza, que preservem os ideais constitucionais. 

 

Bibliografia:

 

-ALMEIDA, Mário Aroso. Manual de Processo Administrativo. 4º edição, Almedina;

 

-GOMES, Carla Amado. NEVES, Ana Fernandes, SERRÃO, Tiago. 2017. Comentário à revisão do ETAF e do CPTA. 3º edição. AAFDL Editora;

 

-ALMEIDA, Mário Aroso. CADILHA, Carlos Alberto Fernandes. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 2º edição. Almedina.

 

- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 7074/15.8T8LSB. L1-1



[1] AROSO, Mário de Almeida. Manual de Processo Administrativo. 4º edição, Almedina. Pág. 219;

[2] SILVA, Vasco Pereira. O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Ações no novo processo administrativo. 2º edição. Almedina. Pás. 368;

[3] A CRP configura a ação popular como forma de legitimidade processual ativa dos cidadãos, que poderá ser exercitada perante qualquer tribunal independentemente do interesse pessoal ou da existência de uma reção especifica com bens ou interesses difusos que estivessem em causa. 

[5] O interesse difuso é entendido como um interesse relativo à comunidade globalmente considerada ou a um grupo indeterminado de cidadãos, que se expressa através s da relação a um certo bem jurídico, a saúde, o ambiente e o urbanismo. E que pode ser encabeçada por qualquer das pessoas ou entidades mencionadas no art 9n2, mediante a denominada ação popular.

[6] SILVA, Vasco Pereira. O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Ações no novo processo administrativo. 2º edição. Almedina. Pás. 370.

[7] SILVA, Vasco Pereira. O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Ações no novo processo administrativo. 2º edição. Almedina. Pás. 371.




Inês de Jesus e Matos

n.º 61418

Turma A

Subturma 1 

 

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