O apetite voraz do legislador em alterar as ‘regras do jogo’: Comentário critico ao 4º/4 alínea e) do ETAF

O apetite voraz do legislador em alterar as ‘regras do jogo’: Comentário critico ao 4º/4 alínea e) do ETAF 


Carolina Caetano Cabaço 




O ETAF sofreu com a Lei 114/2019 a sua décima segunda alteração integrada no pacote legislativo dedicado à reforma da jurisdição administrativa e fiscal. Foram mudados vários artigos tendo por base o “propósito de modernização e de racionalização da organização e das estruturas que integram o sistema de justiça administrativa e tributária, dotando-a de ferramentas que favorecem a agilização de procedimentos, assim aumentando a celeridade e indo ao encontro das exigências constitucionais de tutela jurisdicional efetiva neste domínio”.


As causas de ineficiência da justiça em geral, e em particular a sua morosidade, são várias e distintas, nem todas elas, obviamente, imputadas aos tribunais e aos juízes. Justamente, uma das possíveis causas que importaria sublinhar tem que ver com o apetite voraz manifestado pelo legislador nacional pela constante alteração das ‘regras do jogo’, inovando, aditando, modificando, suprimindo, ratificando. 


É de notar que as alterações sucessivas num curto espaço de tempo do quadro legal existente nem sempre favorecem a celeridade e consequente eficiência da justiça. Muito pelo contrário,  obrigam o julgador e os operadores jurídicos em geral a uma contínua e constante atualização e consolidação de novas regras e de novos conhecimentos em áreas com impacto indesmentível na marcha dos processos, cujo resultado poderá não ser o da justiça material. 


Veremos com maior pormenor a alteração perpetuada pela Lei 114/2019 ao nº 4 do artigo 4º ETAF, com a criação da alínea e), dedicada à delimitação da competência dos tribunais administrativos e fiscais, que conhece a seguinte redação: “Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”. 


Assim, a alínea e) vem excluir da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios decorrentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais. Nos termos do artigo 1º da Lei dos serviços públicos essenciais (Lei nº 23/96 de 26 julho, doravante “LSPE”) , os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural assim como os serviços de comunicações electrónicas, os serviços postais e o serviço de recolha e tratamento de águas residuais prestados por entidade pública ou privada revestem a natureza de “serviços públicos essenciais”, porque tendentes à satisfação de necessidades primaciais e à proteção de qualquer utente (pessoa singular ou coletiva). Contudo, a redação dada à alínea e) não é isenta de criticas, nomeadamente:


A alteração da alínea e do 4º/4 ETAF não foi acompanhada pela alteração de outros diplomas legais que, obrigatoriamente, têm que ser conjugados com este normativo, como é o caso do Regime geral das taxas das autarquias locais, “RGTAL” e da LSPE.


No entanto, é de realçar que o aditamento a da alínea e) foi - e bem - acompanhado pela alteração ao nº 1 do artigo 1º ETAF, sendo que, na redação anterior “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os orgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto”, passando, agora, a dispor que “os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto”. Tal alteração denota uma preocupação clara do legislador em circunscrever a jurisdição administrativa e fiscal às relações jurídicas administrativas e fiscais. 


Noutro prisma, a jurisprudência propalada nos últimos anos, defende que os montantes devidos pelo fornecimento de água e serviços de saneamento se configuram como taxas (Acórdão do STA de 10/04/2013, Processo nº 015/12). Ora, atenta a natureza de taxas, tem entendendo a jurisprudência que os tribunais competentes para dirimir este tipo de conflitos são os tribunais tributários e não os judiciais como a nova alínea e) vem decretar. 


Acrescente-se, ainda, que os litígios relacionados com o consumo/fornecimento de água têm sido resolvidos pela jurisdição administrativa e tributária quando opõem particulares a autarquias locais ou empresas municipais (como exemplo, Acórdão do Tribunal de conflitos de 21/04/2014 Processo nº 044/13). Deste modo, estando as autarquias locais ou empresas municipais investidas de poderes de autotutela, quer declarativa, quer executiva, é natural que as demandadas decorrentes destas relações sejam decididas pela jurisdição mais apta a fazê-lo - a administrativa e fiscal. 


A apreciação dos litígios decorrentes da prestação de serviços públicos essenciais está, agora, excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal. Isto significa que a administração da justiça neste tipo de litígios está, aparentemente, cometida aos tribunais comuns e aos tribunais arbitrais, nomeadamente os que integram a “rede de arbitragem de consumo” (alínea a) do artigo 3º da Lei n´1444/2015 de 8 de setembro). Porém, a lei não esclarece nem exclui expressamente a aplicação das normas do procedimento e processo tributário caso um particular se veja confrontado com um montante liquidado por uma autarquia local. Em caso de indeferimento dessa mesma reclamação, não temos dúvidas que a impugnação da decisão não poderá ser dirigida a um tribunal administrativo e fiscal. Não obstante, parece-nos que os tribunais comuns não estão aptos a decidir segundo normas processuais administrativas e tributárias, pelo que nos causa estranheza que tal venha a suceder. 


Do supramencionado, cremos ter sido fundamental que este aditamento da alínea e) fosse acompanhado, por um lado, pela alteração do RGTAL, neste diploma são inúmeras as referencias a “relações jurídico - tributárias, “tributos”, bem como a regimes próprios do procedimento tributário. O RGTAL teria de deixar de ser subsidiariamente aplicável às relações relacionadas com a prestação de serviços públicos essenciais, prevendo uma exclusão clara de aplicação deste regime. 


Por outro lado, pela alteração à LSPE, este diploma teria de excluir expressamente a aplicação de normas administrativas e tributárias para os casos de litígios decorrentes da prestação deste tipo de serviços. Exclusão de poderes de autotutela declarativa e executiva das entidades públicas  prestadoras de serviços públicos essenciais, apenas quando as relações estabelecidas são de consumo, por forma a que os conflitos decorrentes possam ser decididos única e exclusivamente pelos tribunais comuns. 


Por fim, esta alteração legislativa irá, ainda, ter impacto no modo e volume de arrecadação de receita por parte das entidades públicas que prestam serviços públicos essenciais. Certamente, existirá quem defenda que a alínea e) - por si só - tem a bondade de retirar a autotutela declarativa  e executiva aos prestadores deste tipo de serviços e, consequentemente, muito mais difícil para eles será ter eficácia na cobrança como quando investidos de poder de autoridade. 


Concluímos que, com a presente alteração, foi manifesta a intenção do legislador de aliviar o volume processual dos tribunais administrativos e fiscais, retirando-lhes competência para dirimir conflitos decorrentes da prestação de serviços públicos essenciais.  Contudo, o legislador não cuidou de acautelar que o aditamento da alínea e) fosse devidamente acompanhado das alterações legislativas necessárias para tornar o regime aplicável claro e evitar conflitos negativos de competência. Para além disso, não premuniu uma harmonização de legislação substantiva - e processual - aplicável, esvaziando, sem mais, a competência dos tribunais administrativos e fiscais , o que se afigura potenciador de má litigância.  Reiteramos novamente que o “apetite voraz manifestado pelo legislador nacional pela constante alteração das ‘regras do jogo’” nem sempre é sinónimo de uma melhor administração da justiça. 



Bibliografia: 


Amado Gomes, Carla, Neves Ana, Serrão, Tiago, “Comentários à revisão do ETAF e do CPTA”, 2a ed., AAFDL, Lisboa, 2016 


Aroso de Almeida, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, 4a ed., Almedina, Coimbra, 2020.


Costa, Filipe; Santos, Inês; Carvalho Marlene, “A nova alínea e) do nº 4 do artigo 4º do ETAF: uma análise crítica à luz dos fundamentos político- legislativos e jurisprudências e do principio da unidade e coerência do sistema jurídica, Revista de Direito Administrativo #9 2020, Lisboa, AAFDL Editora



Contencioso Administrativo e Tributário

4º  TA  Subturma 1 

Carolina Caetano Cabaço, nº 58638 

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