Incompatibilidades na representação do Estado pelo Ministério Público


O Ministério Público é um órgão com previsão constitucional (art. 219 CRP), tendo surgido como representante do Rei junto dos Tribunais, passando, depois, a ser um órgão dos Tribunais dependente do Governo, e é hoje, segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho (“Constituição da República Portuguesa Anotada- Vol. II”), um órgão de justiça independente e autónomo, fora da dependência do Poder Executivo e erguido à categoria de magistratura.

Segundo a sistematização dos referidos Autores, o Ministério Público apresenta como funções a representação do Estado em Tribunal (agindo como uma espécie de advogado deste), o exercício da ação penal, a defesa de pessoas carecidas de proteção (como os menores ou os ausentes) e a defesa da legalidade democrática, através da intervenção no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade.

Tendo em conta esta panóplia de funções atribuídas ao Ministério Público, do seu exercício simultâneo podem decorrer conflitos e incompatibilidades. De facto, atribui-se a uma entidade composta por magistrados a representação do Estado, fazendo as vezes de seu advogado, ao mesmo tempo que lhe é imposta a defesa da legalidade democrática, o que significa que, quando a atuação administrativa do Estado seja ilegal (ou, pelo menos quando não seja clara a legalidade dessa atuação), “o Ministério Público encontra-se numa encruzilhada entre a prossecução do interesse público e a defesa da legalidade democrática” (Alexandra Leitão, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos “, in Revista Julgar, nº20).

Como poderá ser ultrapassada, então, a incompatibilidade entre estas duas incumbências do Ministério Público?

Um possível caminho, apoiado na letra do art. 11/1 CPTA, com a redação dada pela Lei 118/2019 (a versão anterior do artigo dizia “sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público”) é o de entender que a representação do Estado pelo Ministério Público é apenas uma mera possibilidade (entendimento já manifestado em Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 03/07/2020), cabendo ao Estado decidir se pretende ou não ser representado pelo Ministério Público, e não uma necessidade. Poderá ainda entender-se que o Estado teria de ser representado pelo Ministério Público somente em litígios relativos aos bens patrimoniais do Estado, tendo em conta o art. 63/1 als. a) e b) EMP. Ainda assim, interpretações como estas, ao não excluírem completamente a representação do Estado pelo Ministério Público, podem ainda dar azo à referida incompatibilidade.

Assim, há que ir mais além: a total exclusão da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público parece ser impossível face ao direito vigente, designadamente o art. 11/1 CPTA, bem como o art. 4/1 al. a) EMP. Contudo, não será descabida, em termos de direito a constituir, a criação de um corpo de advogados do Estado (solução defendida, designadamente, pelo Professor Mário Aroso de Almeida), que deteria o monopólio da representação do Estado em juízo: um passo importante nesse sentido foi dado com a criação do Centro de Competências Jurídicas do Estado, a que o art. 25/4 CPTA (cuja inconstitucionalidade já foi defendida pelo Ministério Público) faz referência.

Julga-se que, com isso, não se esvaziaria, naturalmente, o papel do Ministério Público, que continuaria a ter, no que toca ao contencioso administrativo, v.g, legitimidade para a propositura de ações, bem como poderes em sede de recurso (art. 146 CPTA). Deste modo, continuariam ao seu dispor as “ferramentas” necessárias à defesa da legalidade democrática, conforme é seu mister.

 

Manuel Padre-Eterno

Subturma 1

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