Faz sentido o Ministério Público representar o Estado nos processos administrativos?
A representação em juízo do Estado pelo Ministério Público tem por base o art.219.º, n.º 1, Constituição da República Portuguesa (CRP), contando ainda com previsão legal nos arts.4.º, nº1, al. b) e 63.º, n.º1 , do Estatuto do Ministério Público (EMP), no art.51.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e no art.11.º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
A representação do Estado pelo Ministério Público nos
processos administrativos só é possível quando estão em causa os interesses
patrimoniais do Estado (1), sendo importante ressalvar que, como a
maioria da doutrina afirma, a representação em juízo pelo Ministério Público
não é extensível nem às Regiões Autónomas nem às Autarquias Locais (2).
Cumpre, ainda a título introdutório, fazer uma pequena
anotação quanto à natureza jurídica da representação do Estado.
“Tradicionalmente, tem-se entendido que a representação do Estado pelo
Ministério Público é uma representação orgânica, na medida em que é um órgão do
Estado”, no entanto, como afirma ALEXANDRA LEITÃO, “desta qualificação jurídica
decorrem implicações (…), nomeadamente a impossibilidade de o Estado constituir
advogado e afastar a intervenção do Ministério Público”, preferindo a
professora pela qualificação desta representação como legal, posição que
acompanho uma vez que é dada a possibilidade ao Estado de se fazer patrocinar
por outra pessoa enunciada no art.11.º, n.º 1, do CPTA.
Aquando da diferenciação entre representação e patrocínio
judiciário, há uma clara escolha da primeira em detrimento da segunda, uma vez
que o patrocínio judiciário pressupõe uma representação voluntária.
A opção de o Estado ser representado pelo Ministério Público
tem raízes históricas, como diria VASCO PEREIRA DA SILVA, decorre dos “traumas
de infância” do contencioso administrativo (3). Felizmente, as
sucessivas alterações do CPTA têm vindo a diminuir, progressivamente, as
possibilidades de o Ministério Público representar o Estado.
No entanto, continua a não ser de fácil compreensão a
possibilidade de o Ministério Público estar dos “dois lados da barricada” em
qualquer processo administrativo.
Por um lado, o Ministério Público pode ser parte, tendo
legitimidade ativa para interpor ações públicas (comuns ou especiais) contra o
Estado, nos termos do art.9.º, n.º 2, do CPTA, numa lógica de defesa do
interesse público, dos direitos fundamentais e da legalidade administrativa, segundo
o disposto no art.4.º, n.º 1, al. f), do EMP.
Por outro lado, o Ministério Público representa o Estado em
ações contra este propostas. Claro que neste caso o Ministério Público não é
parte, ou seja, não tem legitimidade passiva, mas não deixa de estar a
representar o demandado na ação.
É assim configurável uma ação em que o Ministério Público
tenha que ser parte ativa e representante da contraparte ao mesmo tempo. Claro
que quando haja conflitos na representação pelo Ministério Público, segundo o
art.93.º, n.º 2, do EMP, os magistrados solicitam ao diretor do JURISAPP a sua
substituição na representação do Estado, mas será esta solução a desejável?
Confio plenamente na total competência, imparcialidade e
independência dos magistrados do Ministério Público, contudo, esta situação
dual não deixa de, aos olhos do comum cidadão, poder inspirar alguma desconfiança
neste órgão cujo papel é tão importante no Estado de Direito Democrático. Penso
que não é isto que o Ministério Público necessita ou merece.
Não nos podemos esquecer: à mulher de César não basta ser
honesta, é preciso parecer honesta.
(1) Leitão, Alexandra, “A representação do Estado
pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, in Julgar, nº20, 2013,
p.191
(2) Dos Santos Silva, Cláudia Alexandra, “O
Ministério Público no atual contencioso administrativo português”, in
E-Pública, vol.3, n.º 1, abril 2016, p.173
(3) Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise, Coimbra, Almedina, 2009, pp.9-13
Outra bibliografia:
Dos Santos Silva, Cláudia Alexandra, “O Ministério Público
no atual contencioso administrativo português”, in E-Pública, vol.3, n.º 1, abril
2016, pp.166-183
Leitão, Alexandra, “A representação do Estado pelo
Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, in Julgar, nº20, 2013,
pp.191-208
Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise, Coimbra, Almedina, 2009
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de
03-07-2020, processo n.º 00902/19.2BEPNF-S1 (Acordão
do Tribunal Central Administrativo Norte (dgsi.pt))
Site do Ministério Público - www.ministeriopublico.pt
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