“Deterá o Tribunal poderes de pronúncia ilimitados?” || Duarte Engana


Em sede de aula prática, perante uma hipótese colocada, surgiu a pergunta: “Deterá o Tribunal poderes de pronúncia ilimitados?”. Para começar, há que entender o contexto em que esta pergunta aparece – estamos perante uma condenação à prática do ato devido, que se encontra prevista desde os artigos 66º a 71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, “CPTA”), sendo exatamente o artigo 71º em que nos devemos focar para responder à pergunta colocada. Apesar de a resposta ter sido dada na aula prática, este é um tópico que continua a ser relevante e que continua a suscitar perguntas – por isso, o objetivo desta publicação será explorar este tópico que trata os poderes de pronúncia do Tribunal e por último, dar uma resposta à pergunta, depois de feita uma reflexão sobre esta matéria.

Para começar, o que se entende por uma condenação à prática de ato devido? De acordo com o o artigo 66º CPTA, o pedido de uma ação de condenação à prática de ato devido serve para obter, como o próprio nome diz, a condenação da entidade competente à prática, dentro de determinado prazo, de um ato administrativo que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado. Diz-nos o professor Vieira de Andrade que um ato “devido” é, portanto, aquele ato administrativo que na perspetiva do autor, deveria ter sido emitido e não foi, quer tenha havido uma pura omissão ou uma recusa – e ainda quando tenha sido praticado um ato que não satisfaça uma pretensão. Apesar de este tema ter muitos mais tópicos que devem ser discutidos, o que nos importa aqui é a sentença destas ações, sendo que há uma geometria variada de sentenças, sendo que estes processos não conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico alcance.

Por um lado, teremos sentenças que cominam a prática de um ato administrativo cujo conteúdo é logo determinado pela sentença, correspondendo ao exercício de poderes vinculados, impondo à Administração a prática de um ato com determinado conteúdo. E por outro, teremos as sentenças que cominam a prática de um ato administrativo cujo conteúdo é relativamente indeterminado, na medida em que estão em causa escolhas que são da responsabilidade da Administração – o Tribunal terá que indicar a “forma correta” de exercício do poder discricionário. Serão estas sentenças a que temos dar destaque, porque se pergunta qual a extensão de poderes de pronúncia que o tribunal tem neste domínio? E voltamos à pergunta: terá o tribunal poderes de pronúncia ilimitados?

O professor Vasco Pereira da Silva menciona que em 2015 foi-se mais longe no aprofundar destes poderes, sendo que houve uma maior abertura a este mecanismo processual. A verdade é que este problema coloca-nos na fronteira entre o domínio de administrar (que não se pretende dos tribunais, sobrepondo os seus próprios juízos subjetivos aos daqueles que exercem a função administrativa) e o domínio de julgar, em do que se trata é de verificar a conformidade da atuação dos poderes públicos com as regras e os princípios de Direito a que eles se encontram obrigados.

O professor Mário Aroso de Almeida defende que pode ser atribuído um maior alcance aos poderes de pronúncia, nunca deixando de reconhecer que eles encontram um limite no princípio da separação e interdependência de poderes. Na ótica do professor, tudo depende do entendimento que se assume deste princípio. No entendimento tradicional preconizava que os tribunais administrativos só fossem admitidos a ter uma intervenção de sentido negativo sobre o exercício dos poderes administrativos, que se esgotasse na eliminação da ordem jurídicas das manifestações de poder ilegalmente emitidas pela Administração. Caso fosse permitido ao tribunal pronunciar-se positivamente sobre os termos em que o poder administrativo devia ser exercido, ficaria aberta a porta a eventuais abusos por parte do poder judicial, em detrimento dos espaços de valoração próprios do exercício e discricionariedade administrativa.

De outro modo, temos o entendimento do CPTA, sendo que este ocorre quando, em determinada matéria, o quadro normativo aplicável reserva para a Administração o poder de introduzir a definição jurídica primária através da prática de um ato administrativo, a Administração beneficia de uma reserva de princípio quanto ao poder de definir o Direito nessa matéria. Por isso, o interessado que, por hipótese, tenha direito à emissão do ato em causa, deve começar por requerer à Administração a respetiva emissão. Mesmo que a Administração não emita o ato devido, o interessado não pode, sem mais, pedir ao tribunal que se substitua à Administração na emissão desse ato. No entanto, já lhe pode pedir que imponha à Administração o dever de praticar o ato, em toda a extensão em que as vinculações normativas permitam tal imposição (artigo 71º CPTA). Emitir uma tal pronúncia é aplicar a lei e o Direito, sendo que o tribunal estaria a proporcionar ao interessado a adequada tutela judicial no plano declarativo.

Deste modo, não se trata de eliminar os espaços de decisão próprios da Administração, apenas se trata de assumir que, por força constitucional sobre os tribunais administrativos, enquanto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, recai o dever de fazer cumprir a lei e o Direito, em toda a extensão em que a conduta da Administração se deva pautar por regras e princípios jurídicos. Assim, os tribunais não podem deixar de exercer a função de que estão incumbidos, pronunciando-se, em toda a extensão em que as normas jurídicas aplicáveis o permitam, sobre os termos em que a Administração deve definir o Direito através da prática do ato administrativo que lhe cumpra emitir.

Para concluir, o Tribunal indica a “forma correta” de exercício do poder discricionário, devendo apreciar as vinculações decorrentes do ordenamento jurídico para aquela situação da vida, em concreto e em face dos condicionalismos fácticos de aplicação, explicitando os respetivos alcance e limites, assim como apreciando os critérios e os parâmetros das escolhas em causa e, nomeadamente, indicando aquilo que consideraria ser uma (ou mais do que uma) decisão respeitadora ou violadora dessas exigências legais. Deste modo, penso que é de concordar que o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração, de forma a assegurar o princípio da separação de poderes. Portanto, as sentenças não se devem limitar a cominar a prática de um ato administrativo e deve determinar, em concreto, qual o âmbito e o limite das vinculações legais – isto é o que significa explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido.

BIBLIOGRAFIA

·         ANDRADE, José Vieira de, “A Justiça Administrativa”, Almedina, Coimbra 2012

·         SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, Coimbra 2013

·         AROSO DE ALMEIDA, Mário, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2016

 

Duarte Engana, nº60928

Turma A, Turma 1

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