Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 03/07/2020:

Antes de proceder à discussão e análise do acórdão em causa, há que explanar os factos ocorridos, de forma a contextualizar a situação presente em juízo. O Ministério Público interpôs um recurso de apelação, invocando e pretendendo a sua revogação e substituição por outro que determinasse a renúncia da aplicação, neste processo, de as normas decorrentes do art.11º/1 (parte final) e do art.25º/4, ambos do CPTA, aduzindo a sua inconstitucionalidade material. Por fim, ainda, pediu que fosse declarada a nulidade da falta de citação do réu, ESTADO PORTUGUÊS, com a consequente anulação de todo o processado posterior à petição inicial.

Um dos argumentos utilizados pelo Ministério Público residiu no facto de, segundo o 25º/4 CPTA, como foi demandado o Exército Nacional (porque estava integrado no Ministério da Defesa Nacional), a Caixa Geral de Aposentações, IP, e o Estado Português, a citação do réu foi dirigida unicamente para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, sendo que o Ministério Público não foi citado, nem notificado na pendência da ação, como deveria ter sido segundo o 85º/1 CPTA.

Outro argumento referido foi a introdução do 25º/4 CPTA na revisão de 2019, segundo a lei nº118/2019, de 17 de setembro, que veio estabelecer, que quando fosse demandado o Estado já não seria citado o Ministério Público, e em representação deste, seria agora citado o Centro de Competências Jurídicas do Estado, que é um serviço central da Administração Direta do Estado, integrado na Presidência de Conselho de Ministros. O 25º/4  CPTA conjugado com a alteração também realizada ao 11º/1 (parte final) CPTA, onde antes se vislumbrava “ sem prejuízo da representação do estado pelo MP” passou a prever “ sem prejuízo da possibilidade de representação do estado pelo ministério publico”, acaba por esvaziar o essencial da função do Ministério Público nos tribunais administrativos, enquanto representante do Estado- Administração, mostrando-se desconforme com o consagrado no art.219º/1 CRP, sendo que este preceito contém uma regra de atribuição de competência ao Ministério Púbico da representação do Estado.

O Ministério Público invoca a lei nº 68/2019, de 27 de agosto, que diz respeito ao Estatuto do Ministério Público, mais especificamente o art. 4º1/b), enunciando a inconstitucionalidade das normas supramencionadas, demonstrando através deste preceito a confiança na representação do Estado pelo Ministério Público. Foca-se ainda numa reiteração continua ao longo dos tempos, vigente em diversos diplomas recentes, para comprovar a efetiva representação do estado pelo Ministério Público, nas mais variadas áreas como a cível, administrativa, e até tributária, colocando como fator central desta discussão o art.219º da CRP, que confia com clara precisão a representação judiciária referente ao Ministério Público, sem necessidade de densificação pela legislação ordinária.

Vem ainda alegar o cariz excecional e subsidiário, que a palavra “possibilidade” vem trazer à representação do Estado pelo Ministério Público, que anteriormente a este tipo de redação seria considerada uma regra geral, invocando ainda que não foi feita nenhuma alteração ao art.51º do ETAF neste sentido.

Invoca ainda que esta possibilidade de o Centro de Competência Jurídica do Estado decidir se transmite a representação do Estado pelo Ministério Público, não se equaciona, pois este não é um serviço do estado administração, mas sim um órgão constitucional da administração da justiça, sendo que o princípio da autonomia externa do Ministério Público (219º/2 CRP) sai gravemente ferido.

Em conclusão, o Ministério Público, entende que as normas provenientes do art.25º/4 CPTA e 11º/1 CPTA, são inconstitucionais materialmente (art.277º/1 CRP), por violação do disposto no art.219º CRP, violando também os princípios e as disposições que resultam do 165º/1 CRP.

Quanto à análise e apreciação do recurso, a questão principal é saber se as normas decorrentes do 25º/4 CPTA e 11º/1 CPTA são inconstitucionais, e por este motivo, deviam ter sido desaplicadas, através da notificação o Ministério Público em vez do Centro de Competência Jurídica do Estado. Na atual versão destes artigos, retira-se que nas ações em que o Estado seja a parte demandada é apenas assegurada a possibilidade da sua representação competir ao Ministério Público e já não como acontecia antigamente, que esta competência lhe pertencia. Por outro lado, a citação do Estado deixou de ser dirigida ao Ministério Público para passar a ser dirigida ao Centro de Competência Jurídica do Estado, serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa, que se integra na Presidência do Conselho de Ministros e está sujeito ao poder de direção do Primeiro Ministro ou do membro do Governo, a quem aquele o delegar.

A decisão proferida no acórdão foi negativa relativamente à inconstitucionalidade do 25º/4 CPTA, quanto ao facto de a citação ter sido feita ao Centro de Competência Jurídica do Estado, em vez de ser feita diretamente ao Ministério Público, invocando este a anulação de todo o processo, baseando-se na falta de citação (188º/1/b) CPC).

Uma das justificações plausíveis para a solução consagrada no 25º/4 CPTA, decorre da circunstância de ter deixado de haver um modelo dualista de meios processuais principais não urgentes, através da implementação da “ação administrativa”, na qual passou a haver pedidos cumulativos que antes eram separados consoante a forma da ação. Isto veio a trazer diversas dificuldades, e por isso, daí explica-se a necessidade da citação ser feita ao centro quando na mesma ação sejam demandados vários ministérios, ou o estado, ou ministérios e o estado, tal como foi nos autos.

Em conclusão, entendo que a decisão tomada pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, na minha humilde opinião, foi a acertada, pois, tendo em conta, a natureza e a substância das normas em questão (25º/4 e 11º1/1 CPTA), não consigo vislumbrar uma inconstitucionalidade material, retirada da análise do 219º/1e 2 da CRP. Tal como foi dito, no Acórdão, não se retira deste artigo que exista uma reserva absoluta do Ministério Público no que toca à representação judiciária do Estado, o que se pode concluir é que essa será a sua função principal, mas isto não induz logicamente que não poderão existir casos em que o Estado será representado por outras entidades, tal como claramente resulta do art.11º/1 CPTA (parte final). Há que verificar que a existência de normas e diplomas vigentes na nossa ordem jurídica, que emanam a confiança a outras entidades no que toca à representação do Estado, apenas constituem outros mecanismos de tutela jurisdicional, não sendo então inconstitucional, pois não está a ir contra nada estipulado na Constituição, mas sim, de certa forma, a complementar o que já foi estabelecido neste Lei Fundamental. 

 

 

Bibliografia:

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA- Manual de Processo Administrativo, Almedina 2020, 4ªedição;

MÁRIO DE AROSO DE ALMEIDA- O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina; 4ªedição;

Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 3 de Julho de 2020, disponível em www.dgsi.pt

VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,2013;

JOSÉ CARLOS VIERA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina 2009;

 

 Trabalho realizado por: 

Rosa Bela Condesso Semeão 

nº61037

Turma A, Subturma 1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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