Brevíssimo Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05-11-2020
I – A tutela cautelar consiste na garantia da obtenção do resultado que
decorra de uma decisão judicial, procurando impedir que durante a pendência do
processo se dê uma situação de caráter irreversível ou que produza danos tão
gravosos que coloquem em causa a utilidade da decisão. Esta tutela tem
consagração, desde logo, na Constituição, cujos preceitos atendíveis são os
artigos 20º/5 e 268º/4, assegurando este último a “tutela jurisdicional efetiva
dos […] direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo […] a adoção de
medidas cautelares adequadas”. O atual CPTA dedica a esta questão todo o seu
título IV, i.e. os artigos 112º e seguintes. Discutiremos a natureza deste
primeiro artigo, bem como do regime, como um todo. Além do artigo 112º, é
também essencial, neste regime, o artigo 120º que determina os critérios de
decisão para o decretamento de uma providência cautelar.
II – Debrucemo-nos, pois, sobre o caso suscitado junto do STA de um
conjunto de particulares que pugnam pelo decretamento de uma providência
cautelar, no quadro de uma ação principal que corre também no STA. Trata-se de
um caso referente à expropriação dos requerentes, em 1980, em benefício do
Município da Batalha. Seguiu-se uma longa batalha judicial que decorria ainda
quando foi pedida a apreciação desta providência cautelar. Releva para o nosso
caso que, em 2017, foi proferido um despacho em que o relator dava conta de que
“existe acordo não só no tocante à área dos terrenos dos Exequentes que foram
objeto das alienações em causa, como no valor da receita obtida na venda dos
terrenos […]. Todavia, as partes divergem no tocante à área que deve ser
considerada para efeitos do cálculo indemnizatório” [1].
III – É no quadro descrito que os requerentes pedem a apreciação de uma
providência cautelar de atribuição de cem mil euros, relativa ao valor da
compensação que lhes é devida. Alegam um fundamento pouco comum, no âmbito do
requisito do periculum in mora: entendem que “o risco de lesão concreto recai
sobre a morte dos Requerentes”. Avançam os argumentos da idade avançada que têm
(entre 72 e 87 anos), bem como a demora na obtenção de decisões finais, notando
que lutavam havia 40 anos para ver reconhecidos os seus direitos e que a ação
em concreto (uma ação executiva) durava havia mais de 8 anos. Porém, o Tribunal
de Secção não deu provimento ao pedido dos requerentes, tendo considerado que
se tratava de uma questão de provisório pagamento de quantias enquadrável,
portanto, no artigo 133º. Ora, este tem como requisito que o decorrer do tempo “provoque
uma situação de grave carência económica”, algo que os requerentes não tinham
alegado, não havendo, pois, factos que preenchessem esse requisito.
IV – Cumpre aqui, recorrer a um célere enquadramento histórico. Antes da
entrada em vigor do CPTA, refere-se “um quadro desolador, onde
a única providência cautelar que era expressamente prevista na legislação
administrativista era a suspensão do ato”[2]. Tal cenário levava mesmo
o Professor VASCO PEREIRA DA SILVA a ironizar dizendo que, se face à alteração
da Constituição de 1989 existia já uma inconstitucionalidade por omissão no
tocante à tutela cautelar, face à alteração de 1997 “era preciso inventar uma
nova figura, a da inconstitucionalidade por omissão “agravada” para
caracterizar um tal fenómeno de “reiterada indiferença” à Constituição.”[3]. Outros Autores não
subscreviam a tese da inconstitucionalidade, uma vez que o juiz poderia recorrer
aos instrumentos de tutela cautelar presentes no Direito Processual Civil,
subsidiariamente aplicável. Ainda assim, defendia-se que “a carência de
instrumentos cautelares de matriz administrativa mantinha-se quase intocada, e
o clima de desagrado relativamente à prevalência da omissão do legislador
ordinário sobre a intenção claramente expressa, em 1997, pelo legislador
constituinte adensava-se de dia para dia”[4].
V – Porém, com a reforma de 2002, tendo entrado em vigor o atual CPTA,
criou-se um novo regime, assente numa verdadeira cláusula geral constante do
artigo 112º. Refere M. F. DOS SANTOS SERRA que “o legislador optou
por edificar uma cláusula aberta, prevendo expressamente a possibilidade de se
adotarem providências cautelares que não estejam especificadas na lei”[5]. VIEIRA DE ANDRADE vai
mais longe e admite que essa cláusula aberta, “em cumprimento estrito da garantia
constitucional, admite providências de quaisquer tipos […]. E obviamente – não
o diz, mas resulta de vários preceitos e dos princípios gerais – sem quaisquer
limitações que não sejam as que resultam da natureza das coisas e dos limites
funcionais da jurisdição administrativa.”[6].
VI – Neste quadro, a
posição do Tribunal de Secção dificilmente será compreensível. Avancemos três
argumentos que parecem essenciais. Em primeiro lugar, a solução da cláusula
aberta era não só defendida de iure condendo como reúne-se, hoje, um
largo consenso na doutrina, como se viu. Não parece ser possível defender que o
legislador quisesse sujeitar qualquer conjunto de providências cautelares a um
dos artigos deste regime. Em segundo lugar, recorde-se que a epigrafe, aliás
como qualquer definição legal, não vincula o intérprete, pelo que a referência
na epígrafe do artigo 133º à “regulação provisória do pagamento de quantias” não
deve condicionar o intérprete face à cláusula do artigo 112º. Em terceiro
lugar, o legislador consagra, nos termos do artigo 120º/3, a possibilidade do juiz
decretar providências que não correspondam ao pedido dos requerentes, pelo que
não seria de se aceitar, igualmente, o entendimento segundo o qual o Tribunal
apenas poderia verificar os pressupostos de uma providência cautelar constantes
do artigo 133º, com o argumento de se ver limitado à providência que
correspondesse ao pedido do requerente. Nunca estaria o juiz escusado de
aplicar a solução jurídica proposta pelo CPTA, leia-se o decretamento da
providência cautelar pedida pelos requerentes, verificados os requisitos
gerais. Será muito difícil ainda não ver na decisão recorrida uma reminiscência
dos traumas da infância difícil do contencioso administrativo, (psic)analisados
por VASCO PEREIRA DA SILVA[7].
VII – Assim, no acórdão em causa, o Tribunal começa por expressar o seu
desacordo com a interpretação que é feita do âmbito de aplicação do artigo 133º,
avançando que este “não tem uma pretensão de aplicação generalizada a todas as
providências em que esteja em causa a regulação provisória de uma situação
jurídica que envolva o pagamento de uma quantia certa”. Reconduz-se, assim, a
questão em apreço a saber se os argumentos dos requerentes, nomeadamente o risco
de vida, preenchem o requisito do periculum in mora. Os Conselheiros entendem
que “o que impressiona, neste caso, é a conjugação desse risco [de morte] com a
duração previsível do processo até que os Requerentes recebam uma indemnização
pelo sacrifício do seu direito à reversão das parcelas que lhe foram
expropriadas há 40 anos, direito esse que já foi definitivamente reconhecido
por este Tribunal em 2013.”. Assim, concedem provimento ao recurso condenando os
requeridos ao pagamento de cem mil euros a título de reparação provisória.
VIII – Esta decisão conta, contudo, com 3 votos
de vencido. O terceiro põe em causa o recurso aos pressupostos gerais, neste
caso, com recurso a preceitos do CPC que não nos parecem aptos a contrariar os
argumentos que já avançámos, pelo que os mantemos. Os dois primeiros reportam-se
ao entendimento que o tribunal fez do preenchimento do requisito do periculum
in mora, afastando a hipótese de recurso ao risco de vida como critério
para a decretamento da providência. Da nossa parte, a crítica não parece estar
bem colocada: o tribunal frisa a importância de considerar que o risco de vida,
só por si, não permite considerar que está preenchido o requisito do periculum
in mora. Porém, in casu, havia outros aspetos que deveriam ser
ponderados e que apontavam no sentido do decretamento da providência cautelar como
pedida. Consideramos, como o fez o douto acórdão, que não fará sentido fechar a
porta a considerar o risco de vida como um dos elementos, ainda que insuficiente
por si só para o preenchimento do referido requisito, num juízo que se quer casuístico.
Miguel Simões Correia
[1] Cfr. Acórdão do STA de 5 de
Novembro de 2020, disponível www.dgsi.pt.
[2] JOSÉ CARLOS VIEIRA
DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 2009, p. 343.
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2013, p. 211.
[4] MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA, “Breve apontamento sobre as providências
cautelares no novo contencioso administrativo”, in Estudos jurídicos e económicos
em homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, 2006.
[5] MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA, op.
cit.
[6] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, op.
cit., p. 346.
[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, op. cit.,
p. 15.
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