A representação do Estado pelo Ministério Público
“O agente do ministério
público (…), é o verdadeiro e único representante do estado perante os
tribunais civis” dizia José Dias Ferreira no seu Código de Processo Civil
Anotado de 1887, orientação esta que, sendo extensível hoje à jurisdição
administrativa, veio a ser recorrentemente confirmada na legislação subsequente.
De facto, nos termos dos artigos 291 nº1 da CRP, do 4 nº1 a) e 63 nº1 do EMP
(Estatuto do Ministério Público), do 51º do ETAF e 11º do CPTA, compete ao
Ministério Público representar o Estado.
Esta representação, na
opinião dos professores Alexandra Leitão, Cláudia Alexandra dos Santos Silva e
Mário Airoso de Almeida não deve ser entendida como uma mera relação de
patrocínio, intervindo o ministério público como parte principal nos termos do
artigo 9º EMP e não apenas enquanto patrono judiciário. Além do mais,
consideram ser esta uma situação de representação legal e não orgânica, uma vez
que que ministério público se trata efetivamente de um órgão do estado, mas não
de um órgão da pessoa coletiva estado
Apesar das consagrações
referidas acima, no decorrer desta última década, esta função foi alvo de duas
alterações legislativas que produziram um considerável esvaziamento do seu
papel atuante, ao ponto de chegarem mesmo a ser levantadas, pelo próprio
ministério público, questões sobre a possível inconstitucionalidade desses
preceitos.
Perante todas estas
vicissitudes impõem-se as seguintes questões, de que forma se alterou a figura
da representação do estado pelo ministério público desde com a reforma de 2019
e haverá mérito nas alegações de inconstitucionalidade apresentadas?
Para responder a esta
pergunta começaremos por explorar o regime imposto pela reforma de 2019 e
concluiremos com uma análise e breve comentário dos argumentos apresentados na
arguição da sua inconstitucionalidade.
Segundo o professor Vasco
Pereira da Silva, a “reforminha” de 2019 surgiu essencialmente, como uma “reforma
de juízes”, pugnando principalmente pela introdução de mais celeridade nos
tribunais administrativos. No entanto emergiram também outras modificações que
não se enquadram diretamente neste objetivo, nomeadamente a relativa ao
patrocínio judiciário que nos cabe aqui analisar.
O novo artigo 11º do
CPTA vêm estabelecer a clássica obrigatoriedade da constituição de mandatário
em sede de tribunais administrativos, reconhecendo que essa função pode ser
assumida por uma série de figuras, todavia produz uma verdadeira alteração com
a introdução da locução “possibilidade” em sede da representação do Estado pelo
Ministério Público. De facto, o regime anterior não era permissivo, impondo a
obrigatoriedade (que a reforma de 2019 suprimiu), desta representação no âmbito
da defesa dos interesses patrimoniais do estado nos termos do artigo 53 nº1 a) do
anterior EMP (Estatuto do Ministério Público). Em consequência, hoje a representação
do Estado em tribunais administrativos poderá ser assegurada por outros
operadores para além do Ministério Público. O professor Ricardo Pedro refere que
tal alteração surge, primeiramente, na esteira de uma opção política pela
tendencial privatização da função de representação do estado, e em segundo lugar,
pelo facto da reforma anterior de 2015 não ter verdadeiramente respeitado o
diploma da assembleia da república que autorizou o governo a proceder às alterações
da reforma, ficando aquém da liberalização prevista nesta lei de autorização
legislativa nº 100/2015 de 19 de agosto.
O âmbito objetivo desta representação
é nos revelado pela conjugação dos artigos 51º do ETAF e 63 nº1 a) e b), dos
quais decorre que a representação do Estado pelo Ministério Público opera no plano
da “defesa dos seus interesses patrimoniais”, desde o caso consubstancie
especial complexidade ou onerosidade e se verifique uma decisão nesse sentido
pelo Procurador-Geral da República.
Quanto ao âmbito subjetivo
da representação, a reforma também veio instituir o JurisAPP (Centro de Competências
Jurídicas do Estado) que, nos termos do artigo 2 nº1 do DL nº149/2017, veio assumir
para si a representação em juízo de uma série de entidades anteriormente incluídas
no âmbito do Ministério Público.
Por fim, devemos ainda
referir o novo artigo 25 nº4 do CPTA que estabelece o JurisApp como o local de
citação do Estado quando este seja demandado, devendo esta entidade “assegurar
a sua transmissão aos serviços competentes e coordenar os termos da respetiva
intervenção em juízo”
Na peça processual em questão[1]
o Ministério Público vêm arguir a inconstitucionalidade dos artigos 11 nº1 e 25
nº4 do CPTA referidos acima, alegando essencialmente que a sua nova redação “reduz
a presença do Ministério Público como representante do Estado (…) a níveis
subsidiários e minimalistas, bem como confere à JurisAPP a competência para
coordenar os próprios termos da intervenção do Ministério Público” o que seria contrário
ao artigo 219 nº1 e 2º da CRP. Fundamentalmente, a argumentação baseia-se no
entendimento que estas normas esvaziam excessivamente a função constitucional de
representação do Estado nos tribunais administrativos e que retiram ao Ministério
Público a sua autonomia em prol da JurisApp, A representação do Estado pelo
Ministério público configuraria um “verdadeiro princípio judiciário
constitucional, com alcance material” cuja nova redação do 11 nº1 alegadamente
subverte por transformar a regra da competência do Ministério Público numa exceção.
Por outro lado o 25 nº4 do CPTA viria destruir a “mais elementar lógica de
constituição da instância processual administrativa” pois o Estado passaria a
ser citado numa “entidade que não possui poderes legais para a sua
representação e, por outro, não é citado através do órgão que possui tais poderes”
e consubstanciaria uma ofensa do princípio da autonomia do Ministério Público
devido à competência da JurisApp para coordenar os próprios temos da
intervenção deste último quanto a aspetos relativos à técnica do processo. As
críticas formuladas pelo Ministério Público a esta novas redações dos artigos
11º e 25 CPTA surgem a nosso ver como como corretas no sentido que parecem
efetivamente proceder a desvirtuação dos preceitos 219 nº1 e 2 da CRP, retirando-lhes,
embora que de forma subtil, o essencial do seu papel atuante.
O tema da representação
do Estado emerge como uma realidade particularmente conturbada no plano do
contencioso administrativo. Sucessivas alterações legislativas têm surgindo no espaço
de poucos anos, diferentes projetos de alterações falhadas, e opiniões muito
divergentes nos planos doutrinários e institucionais. Embora a solução da
reforma de 2019 ainda se mantenha no nosso ordenamento jurídico, somos da
opinião que esta não se manterá estática por muito tempo, podendo o futuro
importar o reverter para um modelo próximo do existente antes da “reforminha”
ou mesmo a abolição total da representação do estado pelo ministério público,
tal como defendem os professores Vasco Pereira da Silva e Mário de Aroso
Almeida
Bibliografia:
- · SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Almedina, 2ª Edição, 2009.
- · PEDRO, Ricardo, A representação do Estado pelo Ministério Público in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Volume 1, 5ª edição, AAFDL, Lisboa, 2020
- · Representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos – inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas normas constantes do segmento final do nº1 do artigo 11º e do nº4 do artigo 25º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redação conferida pela Lei n.º 118/2019 in Revista do Ministério Público 160, OUT-DEZ 2019
- · ALMEIDA, Mário Aroso de – Manual de Processo Administrativo, 5ª edição, Almedina, 2021
- · SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos – O
ministério público no atual contencioso administrativo português in E-pública
Revista Eletrónica de Direito Público
[1] Representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais
administrativos – inconstitucionalidade material do conjunto formado pelas
normas constantes do segmento final do nº1 do artigo 11º e do nº4 do artigo 25º
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, na redação conferida pela
Lei n.º 118/2019 in Revista do Ministério Público 160,
OUT-DEZ 2019
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