«À primeira instância o que é primeira instância»: Breve anotação sobre as competências do STA em 1.ª instância - António Peças Pereira, 60903
«À primeira instância o que é primeira instância»: Breve anotação sobre as competências do STA em 1.ª instância
- António Peças Pereira, 60903
ORGANIZAÇÃO E HIERARQUIA JUDICIÁRIA
Os tribunais administrativos estão
organizados em três ordens de tribunais, dispostos em plano vertical, em forma
de pirâmide[1]:
os tribunais de primeira instância, os Tribunais Centrais Administrativos e o
Supremo Tribunal Administrativo. A organização judiciária encontra-se,
portanto, ordenada em graus. E o quadro de competências dos diferentes
tribunais é determinado em função da posição que ocupam na hierarquia
judiciária.
Esta hierarquia é a razão de ser da competência
em função da hierarquia (artigos 24.º, 25.º, 37.º e 44.º, ETAF), que pode
ser entendida como aquela que “resulta da distribuição de funções entre as diferentes
ordens de tribunais escalonados verticalmente, dentro da mesma espécie ou
categoria”[2].
No âmbito da disciplina que regula a
competência em razão da hierarquia, podemos distinguir três planos[3]:
1. Hierarquia
stricto sensu, que se concretiza no poder que aos tribunais superiores é
conferido de apreciarem os recursos interpostos das decisões dos tribunais
inferiores;
2. A
competência de dirimir conflitos de competência entre órgãos judiciários;
3. Poderes
de decisão em primeiro grau de jurisdição.
Na hierarquia
judiciária não existe o vínculo de subordinação próprio da hierarquia
administrativa, em que se confere ao superior o poder de direção e impõe ao
subalterno o dever de obediência[4], pelo que não é a
hierarquia que fundamenta o recurso - este não retira a autonomia
interpretativa e de decisão dos tribunais inferiores. O que fundamenta o
recurso é, pois, a consagração legal do direito de recorrer, que surge como
único meio de controlo das decisões dos tribunais[5]. Este duplo grau de
jurisdição, ainda que não seja um direito expressamente consagrado na
Constituição portuguesa, tem sido entendido por alguma doutrina como uma
garantia insuscetível de ser suprimida[6].
TRIBUNAL SUPREMO
“Um
Tribunal Supremo é o tribunal que, colocado no topo de um sistema judiciário,
tem como específica missão a de realizar a unidade do direito”[7].
De
acordo com essa missão, ele assegura a boa aplicação das regras do Direito
pelos tribunais inferiores e vela pela certeza, coesão e clareza. A competência
para reconhecer de recursos das decisões dos tribunais inferiores é apenas o
modo principal de cumprir a referida tarefa
.
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Em Portugal, é o
Supremo Tribunal Administrativo o órgão superior da hierarquia dos tribunais
administrativos e fiscais (art. 209.º/1, b), 212.º/1, CRP e 11.º, ETAF), que tem
sede em Lisboa e jurisdição em todo o território nacional - é, pois, o STA que
exerce as funções de Tribunal Supremo no âmbito da jurisdição administrativa.
O STA funciona por secções e em
plenário (art. 12.º, ETAF) e, por sua vez, as secções funcionam em formação de
três juízes ou em pleno (n.º 2).
O ETAF atribui ao STA as funções de:
1. Tribunal
de 1.ª instância quanto às matérias elencadas no art. 24.º/1, a) a f), ETAF;
2. Tribunal
de recurso jurisdicional: de apelação (art. 25.º/1, a) e 24.º/1, g), ETAF); de
revista (art. 24.º/2, ETAF e 150.º, CPTA); de revista per saltum (art.
24.º/2, ETAF e 151.º, CPTA); de uniformização de jurisprudência (art. 25.º/1,
b), ETAF e 152.º, CPTA).
3. Tribunal
de reenvio, art. 25.º/2, ETAF e 93.º, CPTA;
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO (AINDA
DE 1.ª INSTÂNCIA?)
É com base neste
quadro de competências do STA que cumpre questionar se, no panorama atual,
ainda fará sentido que as matérias elencadas no art. 24.º/1, a) a f) estejam
submetidas ao julgamento, em primeira instância, do STA.
É esta uma boa solução? Altamente
questionável. Não será, antes, que esta opção do legislador tem por base um
trauma da Administração e do Contencioso?
A verdade é que, como sabemos, entre
1832 e 1933 vigorou o sistema de jurisdição reservada, no qual era da
competência dos órgãos da própria Administração ativa a última palavra sobre o
controlo das suas decisões e, também, entre 1933 e 1974 vigorou um sistema de
jurisdição delegada no qual se confiava a um órgão externo o poder de decisão
final sobre a legalidade dos atos administrativos do poder executivo[8], órgão que “apesar de
designado de tribunal, encontrava-se organicamente integrado no poder
administrativo”[9];
e só com a reforma orgânica e processual de 1984 a justiça administrativa rompeu
o vínculo com o Governo, nomeador por excelência dos seus juízes, e com o
Conselho de Ministros, do qual eram dependente.
A perspetiva histórica da evolução
do Conselho de Estado (inspirado no Conseil d’Etat francês) até ao STA
dos dias de hoje demonstra a resistência da Administração em ser julgada por um
órgão externo, imparcial e independente - e quando essa barreira foi
ultrapassada, outras surgiram[10]. E mesmo o STA manteve,
até há relativamente pouco tempo, características próprias do Conselho de
Estado, como a de conservar uma larga quantidade de competências de tribunal de
primeira instância.
Foi, pois, a reforma de 2002 que
levou a uma vasta redistribuição de competências, subtraindo aos tribunais
superiores as abundantes competências de primeira instância que detinham. Foi
neste contexto que se destacou a intervenção de Mário Torres “à primeira
instância o que é primeira instância”[11].
Do que se tratava era de adotar um
modelo em que o STA deixa de funcionar como um tribunal de primeira instância,
para passar a exercer em exclusivo as competências próprias de um tribunal
supremo, atrás elencadas[12].
Contudo, face ao disposto no art.
24.º/1, a) a f) que, como já vimos, elenca as matérias que ao STA compete
julgar em 1.ª instância, ainda podemos, face à sua atual letra, e como o faz José Dimas De Lacerda[13], considerar
que a reforma de 2002 foi uma oportunidade perdida - uma vez que, continuando a referenciar o mesmo autor, ao nível da
Constituição, não está consagrada uma qualquer hierarquia de dignidades
em relação às partes no contencioso administrativo, nem existem maiores
garantias de independências ou imparcialidade em tribunais da mesma jurisdição,
sendo que a questão da competência em razão da hierarquia deve reduzir-se a uma
questão de competência para reexaminar as decisões inferiores.
A verdade é que o STA manter algumas
competências em primeira instância relativas aos órgãos de soberania e outros
órgãos superiores do Estado, denota ainda uma conceção deste como foro
especial[14].
E a verdade é que esta ideia deve
ser combatida, contestada: a justiça administrativa deve ser encarada como uma
outra qualquer ordem jurisdicional, com a mesma dignidade que qualquer
outra justiça e, como tal, todas as questões e litígios devem entrar, como é
norma, por tribunais de primeira instância[15].
Ademais, o critério a utilizar deve
ser o critério da importância das questões a julgar e não a importância dos
seus autores para aferir do conhecimento em primeira instância[16]. E a verdade é que não é
defensável que todos os atos ou omissões praticados pelas altas autoridades
elencadas no art. 24.º/,1, a) digam respeito a matérias que pela sua relevância
jurídica ou social merecem, pela importância fundamental que demonstram, ser
julgadas em primeira instância pelo STA.
Deste modo, penso que o legislador
deve dar um passo mais ousado e quebrar o que resta tradição ancorada no
direito francês. Com efeito, nada impede que se retire ao STA as competências
de julgamento em primeira instância que ainda possui e, atribuí-las, em regra,
aos tribunais de primeira instância. A não ser possível eliminar esse “privilégio
das altas autoridades”[17]
deve-se, quando muito, atribuir essas competências, a título excecional
(através de um critério híbrido que combine a importância do autor e a
importância da decisão)[18], aos tribunais de segunda
instância, com recurso para o STA.
Vale ainda, por tudo, a célebre frase «à primeira instância o que é primeira instância», que, em 2021, permanece tão atual quanto há duas décadas.
[1] M. Aroso
De Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4.ª ed., Coimbra,
Almedina, 2020, reimpr., p. 191.
[2] Aroso
De Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 192.
[3] Aroso
De Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 192.
[4] J.
Eduardo De Oliveira Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal
Administrativo como Tribunal Supremo no âmbito da reforma do Contencioso
Administrativo português de 2002, Lisboa, FDL, 2004, p. 8.
[5] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 9.
[6] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 10 e Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 65/88, pesquisável em https://blook.pt/caselaw/PT/TC/462215/ (voto de vencido de Vital Moreira).
[7] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 14.
[8] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 31.
[9] P.
Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vinculação
Administrativa à Juridicidade, Coimbra, Almedina, 2003, p. 119.
[10] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 31.
[11] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 44 e M. José de Araújo Torres, Organização
e competência dos tribunais administrativos, in Ministério da Justiça, Reforma
do Contencioso Administrativo, Vol. I, p. 120.
[12] D.
Freitas Do Amaral e M. Aroso De Almeida, Grandes Linhas da Reforma do
Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2002, p. 51
[13] J.
Dimas De Lacerda, Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo e a
Proposta de Lei do Orçamento para 2003, in Scientia Iuridica, T. LI, n.º
294, 2002, p. 478.
[14] Oliveira
Gonçalves Lopes, Do Supremo Tribunal Administrativo, p. 84.
[15] M.
José De Araújo Torres, Reforma do Contencioso Administrativo - O
Debate Universitário (Trabalhos preparatórios), Vol. I, Coimbra editora,
ed. Ministério da Justiça, 2003, p. 288.
[16] Araújo
Torres, Reforma do Contencioso Administrativo, p. 288.
[17] Araújo
Torres, Reforma do Contencioso Administrativo, p. 288.
[18] M.
José De Araújo Torres, Exposição de motivos das propostas de lei.
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Vol. III, Coimbra
editora, ed. Ministério da Justiça, 2003, p. 288, p. 206.
Comentários
Enviar um comentário