A ação pública do Ministério Público e a representação do Estado – uma possível incompatibilidade no atual contencioso português?


O Ministério Público

O Ministério Público constitui uma magistratura dentro da ordem judiciária; é um órgão constitucional, integrado na organização dos Tribunais, autónomo e independente, não só em relação ao Governo, à Assembleia da República e ao Presidente da República, mas também em relação à magistratura judicial, como resulta do artigo 219º, nº2 CRP. Nenhum poder do Estado poderá condicionar as suas funções. Nos termos do artigo 220º, n1º da CRP, a Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério Público.

 

Breve referência à evolução histórica

Inicialmente, ao Ministério Público competia a representação do rei junto da autoridade judiciária. Mais tarde, passou a ser um órgão dos Tribunais dependente do Governo. Atualmente é um magistrado independente e autónomo, com garantias próprias e próximas das dos juízes.

 

Competências do Ministério Público

Ao Ministério Público compete desempenhar funções em diversas áreas: representar o Estado nas causas em que ele seja parte; exercer a ação penal; defender a legalidade democrática, intervindo no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade, por exemplo; e defender os interesses de certas pessoas mais vulneráveis, como os menores e os ausentes – artigo 219º CRP.

De acordo com o artigo 51º do ETAF, “compete ao Ministério Público representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo para o efeito, os poderes que a lei lhe confere”.

O Ministério Público tanto pode ser autor, no ambito da ação pública, como tem também o dever de representar o Estado nas ações administrativas propostas contra este (art. 11, nº1 CPTA).

 O nº2 do arigo 9º do CPTA, atribui legitimidade ativa ao Ministério Público para propor e intervir em processos principais e cautelares em defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, tais como os que refere o mesmo artigo. 

O Ministério Público pode intervir nos processos em que não se configure como parte, atendendo ao disposto no artigo 85º, nº2 do CPTA, podendo “pronunciar-se sobre o mérito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº 2 do artigo 9”.

O Ministério Público pode ainda interpor recursos jurisdicionais de decisões ilegais, de recursos para uniformização de jurisprudencia e  de recursos de revisão – artigos 141º, nº1, 152º, nº2 e 155º CPTA.

 

A defesa da legalidade democrática – art. 3º-nº2, 199º/f), 219º e 272º-nº1 CRP

A defesa da legalidade democrática, competência atribuida pela CRP ao Ministério público, consiste no dever de fiscalizar os atos e os comportamentos das autoridades públicas e das entidades privadas com poderes públicos de acordo com os princípios da legalidade e da juridicidade.

 

A representação do Estado – 219º CRP

Como já referido, a representação do Estado compete ao Ministério Público. Contudo, o Ministério Público não representa o Estado nos casos em que este atua como pessoa privada.

Neste domínio, cabe-lhe a defesa dos interesses da comunidade, em prol do bem comum.

 

Possíveis incompatibilidades entre a ação pública do Ministério Público e a representação do Estado

As funções que competem ao Ministério Público não são necessariamente compatíveis entre si, o tempo todo, e aí surgem graves problemas para a justiça. Isto é, o Ministério quando está a representar o Estado, poderá deparar-se com um conflito de interesses, atendendo ao facto de também lhe competir defender certos e determinados interesses e valores determinados por lei, como já tive oportunidade de referir.

Como proceder no caso de a defesa do Estado não ser compatível com o princípio da legalidade? Quando a atuação administrativa é ilegal? Deverá o Ministério representar o Estado, defender o interesse público ou defender a legalidade democrática? Ambas atribuições constitucionais.

Sobre esta temática, não encontramos consenso doutrinário. Há duas posições doutrinárias que a esse propósito importa mencionar:

a)      Há quem defenda que o artigo 69º do Estatuto do Ministério Público resolve desde logo o problema em causa, prevenindo-o; isto com base no facto de não caber ao Ministério Público aferir a legalidade de atos a priori. Todavia, excetuam-se os casos em que a ilegalidade do ato é imediatamente aferida por qualquer sujeito, devendo, nesses casos o Ministério Público abster-se de representar o Estado em juízo, uma vez que havendo um conflito entre a defesa do Estado e a defesa da legalidade, esta deverá prevalecer. Não sendo uma ilegalidade evidente, o Ministério Público deve, então, representar o estado e abster-se de de efetuar um juízo de mérito. Posição essa defendida por SÉRVULO CORREIA.

 

b)      E há quem defenda que o Minsitério deve deixar de ter a função de representante do Estado, devendo neste caso o Estado ter a possibilidade de escolher o seu representante, a partir de um advogado solicitado à Ordem dos Advogados, ou um funcionário da Administração capaz de representar a Adminsitração em juízo. É o caso da professora ALEXRANDRA LEITÃO e do professor TIAGO SERRÃO. 

        Por todas essas razões, no atual contencioso português, parece haver uma incompatibilidade no que toca à representação do Estado Português pelo Ministério Público, no contexto já explorado. 




 

 

Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2ªedição, Almedina, Coimbra

CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Voll. II, Coimbra Editora, 2010

LEITÃO, Alexandra, A representação do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos, in Revista Julgar nº20, Coimbra Editora, 2013, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2013/05/191-208-Representa%C3%A7%C3%A3o-do-Estado.pdf

SILVA, Cláudia Alexandra dos Santos, disponível em: https://www.e-publica.pt/volumes/v3n1a10.html#_ftn37

SILVA, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina, 2009


Cláudia Pacheco, nº 28047

TA, Subturma 1 


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