Via de Facto Administrativa, o Art.º 4 nº1 i) do ETAF

 

Como poderão os particulares reagir perante lesões dos seus direitos decorrentes de atuações materiais da Administração Pública não cobertas por um título legitimador. Esta é uma questão que têm dividido as opiniões, e cujas ramificações ainda se manifestam na realidade jurisdicional portuguesa contemporânea.

A administração pública, estando hoje sujeita aos princípios da legalidade, separação de poderes e prossecução do interesse público nos termos do Art.º 266 CRP, desenvolve a sua atuação dentro de condicionantes que visam prever o abuso das suas prerrogativas de autoridade e de tutelar as posições dos particulares. No entanto, esta regulação pode e foi, ao longos dos séculos, exercida através diferentes Modelos de justiça administrativa, vigorando hoje o Modelo Judicialista de repartição jurisdicional dualista nos termos dos Art.º 209 e 212 CRP.

Retoma-se então a pergunta inicial, como poderão os particulares reagir contra as situações de Via de Facto, isto é, onde a administração excede materialmente a esfera para o qual está habilitada e e viola então os seus direitos de propriedade ou quaisquer outros tidos por fundamentais? Terão eles de se dirigir aos Tribunais Judiciais, uma vez que historicamente o contencioso administrativo se apresentava como altamente deficitário no plano do controlo da legalidade das operações materiais da administração, ou pertencerá está matéria ao âmbito jurisdicional administrativo e fiscal?

Para responder a esta problemática vamos começar por analisar as origens gaulesas da regulação portuguesa ao abrigo da Teoria da Via de Facto e o seu acolhimento jurisprudencial nacional e concluiremos pela apreciação do regime vigente estabelecido pela reforma de 2002/2004 e posteriormente clarificado com a revisão de 2015.

 

 

O conceito da Via de facto foi inicialmente desenvolvido pela jurisprudência francesa enquanto produto de um modelo de justiça administrativista mitigado objetivo. Cabendo a competência de decisão final dos litígios a órgãos administrativos independentes e superiores (não correspondendo então a verdadeiros tribunais) e reagindo igualmente à deficiente capacidade de regulação das operações materiais da administração por parte destes órgãos, foi desenvolvida, por via essencialmente jurisprudencial, a Teoria da Via de Facto como um meio de suprir as dificuldades mencionadas.

De facto, encontramos nos acórdãos Dittner e Peillon de 23 de abril de 1804 e 4 de junho de 1823 respetivamente o assentar das fundações desta ideia, ao referirem pela primeira vez o entendimento que as atuações da administração em via de facto tinham perdido a sua natureza administrativa pela ausência do seu título legitimador, estando a sua apreciação excluída do âmbito jurisdicional administrativo.

Consequentemente os particulares afetados deveriam então recorrer diretamente aos tribunais judiciais para fazerem valer as suas posições, beneficiando assim de uma posição consideravelmente mais segura daquela que deteriam perante os tribunais administrativos.

Como refere a professora Carla Amado Gomes, retomando as palavras de George Vedel esta seria uma noção essencialmente funcional, uma vez que “nasce não por imperativo lógico, mas antes fruto de uma necessidade de tutela que só os tribunais comuns – porque podiam dirigir injunções á Administração (despida das suas vestes de autoridade, irreconhecível através de comportamentos cuja ilegalidade os neutralizava) – eram capazes de fornecer (sem risco de violação do princípio da separação de poderes)”.

Em 1949, como fruto do aperfeiçoamento desta teoria, o acórdão Carlier do Conseil D’état vêm estabelecer os três elementos basilares da via de facto que serão retomados em Portugal pelos professores Fernando Alves Correia e José Carlos Vieira de Andrade, sendo estes:

i) Envolvimento de uma atuação material da administração

ii) Manifesta ilegalidade imputada a essa atuação

iii) Da atuação resultar uma violação ostensiva de um direito fundamental, em especial direito de propriedade privada

Quanto a Portugal, a realidade nacional assente em Modelos essencialmente Judiciaristas e Administrativistas mitigados até ao surgimento da constituição de 1976 e a morosidade das reformas do sistema jurisdicional administrativo que compunham um “contencioso meramente cassatório, ainda enfeudado à ideia de separação de poderes à francesa;(…) altamente deficiente no plano das normas e inexistente quanto a operações materiais…” promoveram o forte acolhimento da Teoria da Via de Facto. No entanto, uma grande mudança estava para surgir.

 

A reforma de 2002, veio revolucionar o funcionamento e organização do contencioso administrativo através da entrada em vigor do ETAF e do CPTA, procurando alinha-lho com o sistema constitucionalmente previsto. O novo Art.º 4 ETAF continha um elenco não exaustivo das matérias sujeitas à jurisdição administrativa. Quanto às realidades não mencionadas, a sua inclusão nesta jurisdição deveria ser averiguada através da aplicação dos Art.º 212 nº3 CRP e 1 nº1 ETAF. Como refere a Professora Carla Amado Gomes, os tribunais administrativos passam a “deter poderes condenatórios plenos (…); porque o contencioso administrativo se abriu à sindicância de toda a panóplia de atuações administrativas”, devendo vir provocar o abandono da Teoria da Via de Facto perante esta afirmação da extensão da competência da jurisdição administrativa às situações por ela tuteladas. No entanto tal não se verifica verdadeiramente na prática, desde 2004 até recentemente que se têm verificado que os tribunais administrativos continuam a afastar a sua própria competência em matérias de via de facto com fundamento nessa mesma teoria, como é o caso no acórdão do TCA-Sul de 22/10/2012 (proc. 5515/09) entre outros.  Este fenómeno de incerteza jurisprudencial foi de tal ordem que levou à introdução, na revisão do ETAF de 2015 da nova alínea i) no nº1 do Art.º 4 que sujeita à jurisdição administrativa a função da “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”. Esta consagração expressa vêm apenas trazer a aparência de uma ampliação pois, há luz do ETAF de 2002, a regulação das situações de via de facto já se encontravam sob a competência dos tribunais administrativos, tendo o legislador simplesmente se sentido pressionado à clarificação deste clima de incerteza decorrente do “desvio histórico” da aplicação da Teoria da Via de Facto em Portugal durante as últimas décadas.

Como última nota relevante sobre a polémica da inserção jurisdicional da via de facto, devemos referir a circunstância do caráter determinante da configuração do pedido. Os particulares deverão ter em mente que a concreta formulação dos seus pedidos terá um efeito crucial sobre a admissibilidade da sua ação em sede de tribunal administrativo, de facto estes litígios, podem ser configurados de formas distintas. Se o pedido tiver por objeto primacialmente o reconhecimento e devolução da sua propriedade então estará fora do âmbito jurisdicional dos tribunais administrativos, mas tal já não será verdade se, perante o mesmo litígio, a ação judicial tiver por objeto a impugnação do ato administrativo ao abrigo do qual a administração interveio em propriedade privada.

 

 A questão da regulação jurisdicional das situações de via de facto surge como uma “janela” para o interior da evolução do contencioso administrativo português, a adesão à teoria da via de facto traduz a paulatina e por vezes morosa transição para um modelo de justiça Judicialista e para a sua jurisdicionalização plena. Com o surgir do ETAF de 2002 e a reforma de 2015, o legislador veio encetar os passos ainda necessários para essa transição, sendo que hoje se afigura como certo, há luz do Art.º 4 nº1 i), que as questões de via de facto se encontram plenamente no âmbito jurisdicional dos tribunais administrativos.

 



Bibliografia:


  • ·       SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise: Almedina, 2ª Edição, 2009.

 

  • ·       GOMES, Carla Amado, “Via de facto” e tutela jurisdicional contra ocupações administrativas sem título in Revista do Ministério Público 150, ABR-JUN 2017

 

  • ·       PAÇÃO, Jorge, O âmbito da jurisdição administrativa e considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do nº 1 do artigo 4º do ETAF in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Volume I, 5ª edição, AAFDL, Lisboa, 2020

 

  • ·       PAÇÃO, Jorge, Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4 nº1 do ETAF in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, 2ª edição, AAFDL, Lisboa, 2016




João Maria Leite de Sousa Machado
Nº aluno: 56969

 

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