Um longo caminho por percorrer


Como é do conhecimento geral, a ordem jurídica portuguesa caracteriza-se pela existência de dois grupos de tribunais, nos termos do artigo 209º/1 da CRP:

1.      -  Tribunais judiciais;

2.      - Tribunais administrativos.

Esta dualidade de tribunais torna complexa e, muitas vezes discutível, a delimitação do âmbito de competência tanto de uns como de outros, consequentemente. Contudo, para efeitos do presente post, importa analisar e procurar conhecer quais os critérios para fazer essa delimitação, recorrendo, para este efeito, à análise do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-11-2020, com o nº de processo 48635/19.0YIPRT.L1-7.

A revisão de 2015 foi fundamental para permitir uma melhor delimitação do âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, pois até então era necessário ter em conta, fundamentalmente, o critério da existência de uma relação jurídico-administrativa e fiscal – ora tal consubstancia um mero critério material que, juntamente com uma argumentação sólida, poderia deformar o âmbito de competência dos tribunais administrativos e fiscais.

Contudo, apesar de a revisão de 2015 do Estatuto dos tribunais administrativos e fiscais ter procurado clarificar a delimitação do âmbito de competência destes tribunais, não deixaram – e tão rápido não deixarão – de surgir litígios relativos a se determinada matéria ou situação se enquadra no âmbito de jurisdição dos tribunais judiciais ou se, por outro lado, se insere no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.

Análise do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-11-2021

No caso em apreço, está em causa saber se a situação em análise se insere no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativas ou, pelo contrário, no âmbito de jurisdição dos tribunais judiciais – posição sustentada pelo ora recorrente.

No acórdão está em causa um litígio emergente de uma relação de consumo atinente à prestação de um serviço publico essencial – no caso, o serviço é o fornecimento de água e drenagem de águas residuais.

O Condomínio, ora recorrido, vem afirmar a incompetência material do tribunal judicial para conhecer do litígio entre este e a Águas de Cascais, S.A., por considerar que está em causa uma relação jurídico-administrativa que, nos termos do artigo 1º/1 do ETAF, faz da jurisdição administrativa competente para conhecer e apreciar o litígio em causa.

Contudo, no entendimento da ora recorrente, não está em causa, na situação em apreço, uma relação jurídico-administrativa, o que faz do tribunal judicial que se declarou incompetente para conhecer do litígio, competente. Os argumentos apresentados e que vieram, posteriormente, a ser aceites pelo tribunal, tendo em vista a revogação da sentença recorrida e, consequentemente, a determinação de que o Tribunal competente era aquele no qual a ação foi intentada, foram vários e cumpre analisá-los separadamente.

Contrariamente ao suscitado pelo recorrido, (I) não está em causa uma relação contratual atingida por uma relação de direito público, devido ao facto de na base do litígio não estar uma medição por contador totalizador – ou contador padrão -, mas antes a pagamento de água para o serviço de incêndio do prédio; (II) a relação jurídica em causa é uma relação jurídica privada, mais especificamente uma relação jurídica contratual, na qual nenhuma das partes se encontra imbuída de poderes de autoridade, por não se tratar de uma relação destinada a fins de interesse público; (III) por último, mas sendo este o argumento mais sólido apresentado por parte da defesa da recorrente, é mencionada a 12ª alteração feita ao ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais -, com enfoque na inserção da alínea e) do nº 4 do artigo 4º que dispõe o seguinte:

Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

(…)

e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.

Ora, sendo que a 12ª alteração ao ETAF entrou em vigor a 12 de novembro de 2019 e a contestação foi apresentada a 25 de novembro de 2019, já se encontrava em vigor a disposição em análise, pelo que o Tribunal da Relação concluiu – e, na minha opinião, acertadamente – que, recorrendo ao disposto no artigo 38º/2 da LOSJ, que o tribunal a quo era materialmente para conhecer da causa em questão.

Em suma, podemos dizer que as alterações que têm vindo a ser feitas ao ETAF – e também ao CPTA – são da maior relevância, mas ainda não são capazes de acompanhar o desenvolvimento e o crescimento do Contencioso Administrativo em Portugal. Mostra-se, assim, necessário que sejam feitas mais alterações, por forma a evitar a existência de litígios como o deste caso, clarificando, em particular, o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos. Apesar de a Reforma de 2015 ter sido um grande passo neste sentido, podemos concluir que ainda há um longo caminho a percorrer.


Bibliografia:

 ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Coimbra, 2020;

SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, Coimbra,2020;

Link do acórdão:

http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b34e9b78837cad758025863b003d0b82?OpenDocument

 Joana Ribeiro Loureiro, nº 60975


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