Lei 67/2007 - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Gerador de funcionários públicos pouco diligentes.
A fim de determinar qual o tribunal administrativo competente para resolver determinado litígio, devemos entender a competência dos tribunais em cinco âmbitos distintos, nomeadamente, o âmbito da jurisdição; o âmbito da sub-jurisdição (ou matéria); o âmbito da hierarquia; o âmbito do território e por último o âmbito da matéria.
A presente publicação pretende explorar o âmbito da jurisdição que releva no sentido de saber se estamos perante conflitos que entram na jurisdição judicial (tribunais judiciais) ou, por outro lado, que entram na jurisdição administrativa (tribunais administrativos e fiscais). A este respeito o artigo 212º n.o 3 da CRP estabelece como critério do âmbito jurisdicional administrativo e fiscal o critério das relações jurídicas administrativas e fiscais. Neste ponto importa atentar no artigo 4º ETAF que delimita positivamente (nº 1 e 2) as matérias que são da competência dos tribunais administrativos e negativamente (nº 3 e 4º) as que estão excluídas dessa competência.
A responsabilização institucional das entidades e a responsabilização pessoal dos agentes (conquanto que estejam em causa atos funcionais destes) tem importância sob o ponto de vista contencioso: o ETAF, para além de atribuir à jurisdição administrativa a competência para o julgamento dos litígios relativos à responsabilidade institucional das entidades coletivas (publicas ou privadas) responsáveis pelo exercício da função administrativa (alíneas f) e h) do nº 1 do artigo 4º ETAF), comete aos Tribunais Administrativos a competência para o julgamento dos litígios relativos à “responsabilidade civil extracontratual dos titulares de orgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso (alínea g) do nº 1 do artigo 4º ETAF. Sendo justamente sobre este ponto que pretendemos remeter a nossa atenção, nomeadamente para a Lei 67/2007 ( Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, doravante RRCEEE) que concretiza o comando constitucional consagrado no artigo 22º da CRP (e posteriormente no 271º da mesma lei), do qual decorre um principio geral de responsabilidade patrimonial das entidades públicas, norma que segundo o entendimento da doutrina abrange todas as atuações dos poderes públicos, decorrentes da atividade administrativa, politico-legislativa e jurisdicional.
Para delimitar este problema, podemos pensar no caso mediático da morte de Ihor Homeniuk, cidadão ucraniano que em março de 2020 foi agredido nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa por três inspetores, vindo a morrer alegadamente por asfixia lenta devido à fratura de várias costelas. Perante este quadro fatal e devido a todo o mediatismo que a situação teve na comunicação social, o Estado assumiu a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização aos familiares mais próximos de Ihor (Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2020), nos termos do artigo 22º da CRP e 8º da Lei 67/2007.
A lei descreve que o pagamento estadual tem um caráter provisório, devendo o Estado fazer repercutir esse valor sobre a esfera jurídica dos servidores que estiveram na base das atuações geradores do dever de indemnizar e, assim, recuperar o valor que pagou aos familiares de Ihor Homeniuk, segundo o regime previsto no número 3 do artigo 8º da Lei 67/2007, através de direito de regresso.
Todavia, a questão que agora importa colocar é a seguinte: será que efetivamente isto que ocorre, ou seja, se, como manda a lei, será proposta uma ação judicial, pelo Estado, tendente à efetiva responsabilização de quem, na Administração Pública, praticou o facto lesivo e danoso, gerador de dever de indemnizar ou se, pelo contrário, “a responsabilidade será assumida definitivamente pelo erário (público), o mesmo é dizer, por todos nós (coletivamente)”.
Analisaremos mais detalhadamente o regime que esta lei prevê, nomeadamente os seus artigos 6º (Direito de Regresso) e 8º (Responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave).
Relativamente ao artigo 6º, é de atentar em três importantes dados normativos: em primeiro lugar, o exercício do direito de regresso é juridicamente obrigatório; em segundo, tal obrigatoriedade sucede “nos casos em que este. “Direito de regresso” se encontre previsto na lei” e, por fim, que tal solução legal inovatória não inutiliza o “procedimento disciplinar que haja lugar”. No entanto, no plano jurisprudencial, o direito de regresso continua em “coma” por dois motivos, o primeiro tem que ver com a insuficiente garantia de efetividade do direito de regresso, contestável, no ordenamento jurídico português. O segundo prende-se com razões culturais e sociológicas, que, apesar das relevantes mudanças legais ocorridas, continuam, seguramente, a ter muito peso quanto à matéria em apreço.
Relativamente ao 7º ( Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas coletivas de direito público), importa na medida em que se contrapõe ao artigo 8º, nomeadamente, no artigo 7º, nº 1 ,em casos de “culpa leve”, o dever de indemnizar só poderá ser exigido ao ente coletivo e que, correspondentemente, só este poderá ser juridicamente demandado para o efeito, com exclusão da responsabilização do agente e do exercício de direito de regresso - que, por não haver sequer imputação ao agente, não existe. A exclusividade da responsabilidade da entidade coletiva alarga-se às hipóteses de “funcionamento anormal do serviço” (nº3 e 4 do artigo 7º), com idênticas consequências: só o ente coletivo, mas nunca nenhum agente, fica sujeito ao dever de indemnizar; por essa razão, só pode ser demandada a pessoa coletiva em que se insira o serviço cujo funcionamento deveria, segundo um padrão de razoabilidade, ter evitado o resultado danoso.
Só recai sobre o agente o dever de indemnizar na hipótese em que dele tenha havido conduta dolosa ou culpa grave (nº1 do artigo 8º). Sucede que, por imposição constitucional (22º CRP) nas hipóteses em que sobre o agente recaia o dever de indemnizar por facto ilícito da função administrativa - no Direito Português, as previstas no nº1 do artigo 8º do RRCEE - a entidade coletiva é sempre solidariamente responsável (nº2 do artigo 8º), o que releva sob o ponto de vista das ditas relações externas (i.e como lesado), na medida em que possibilita que a entidade coletiva seja também demandada.
Ao prescrever que o Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária, com os seus agentes (por atos ou omissões funcionais destes, naturalmente), o artigo 22º exige, portanto, “que a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas acompanhe necessariamente a dos seus órgãos, funcionários ou agentes (ac do STA de 28 fevereiro de 2002, proc. nº 048178), exigência que o DL nº 48051 não cumpria integralmente, mas que o artigo 8º do RRCEE satisfaz.
A norma que estabelece a solidariedade passiva da entidade coletiva com o agente responsável explica-se em função de um objetivo perfeitamente identificável: o de garantir, para o lesado, a possibilidade efetiva da satisfação integral da indemnização que reclame, tendo em conta a tendência infinidade dos recursos públicos e a necessária finitude dos recursos dos agentes que sejam concretamente responsáveis pelo facto danoso. Podendo - mas não tendo que - demandar o ente coletivo nos casos em que o dano resulte de ação ou omissão dolosa ou gravemente culposa de um agente, o lesado fica, por isso, matrimonialmente salvaguardado.
A grande questão coloca-se na falta de efetivação do direito de regresso sobre os funcionários que agiram dolosamente, este direito ainda continua em “coma" no plano jurisprudencial, sendo necessário alterar este paradigma. Além da falta de efetivação do direito de regresso, o problema também se coloca noutro prisma, a de que os funcionários que agiram com culpa nunca são individualmente e unicamente responsabilizados pelos seus erros. No caso de culpa leve, a responsabilidade é exclusiva do Estado (art. 7 RRCEE) e no caso de culpa grave solidariamente com o Estado (art. 8º CRP) e não tendo o direito de regresso plena efetivação no plano jurisprudencial, estes funcionários podem vir a passar impunes depois dos seus atos negligentes.
Por último, o artigo 8º, ao permitir uma indemnização antecipada aos lesados pelo Estado, confere, por um lado, uma garantia de satisfação efetiva deste direito do lesado, por outro, na falta de efetivação prática deste direito de regresso, este pagamento a titulo indeminizatório será assumido definitivamente pelo erário (público), o mesmo é dizer, por todos nós (coletivamente). Ou seja, estamos todos a pagar pela negligência dos funcionários públicos.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso. (2020). Manual de Processo Administrativo. 4.ª Edição, Edições Almedina.
GOMES, Carla Amado; PEDRO Ricardo e Serrão Tiago (2017). O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Comentários à luz da jurisprudência. AAFDL Editora
SERRÃO, Tiago (14 janeiro 2021). Quem vai realmente pagar a indemnização à família de Ihor Homeniuk?. Expresso
Carolina Caetano Cabaço, nº 58638
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