Comentário ao Acórdão de 23-05-2019 do Tribunal de Conflitos


1.     Conteúdo

 

          Foi instaurada, no caso em apreço, ação declarativa contra o Município de Paredes, no âmbito da jurisdição comum. Dentre os pedidos formulados pelo autor, cumpre destacar que este pretende (i) obter o reconhecimento como único proprietário dos imóveis identificados na petição inicial e (ii) requerer a condenação da Autarquia na desocupação de uma parcela dos imóveis, além da reposição de seu estado inicial e do pagamento de determinada quantia pecuniária por danos sofridos.

          Estaria em causa a ocupação, pelo Município, de uma parcela do terreno sem autorização ou conhecimento do Autor, o que levou a privação do direito de propriedade que este alega possuir, além de uma possível perda da capacidade edificativa do imóvel.

          O Juízo Local Cível de Paredes, no exame dos pressupostos processuais, julgara verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal (art.º 96º, alínea A e 577º, alínea A CPC), remetendo os autos para o TAF de Penafiel, o qual considerou competente. Argumentou-se que, dada a natureza administrativa do litígio, subsumir-se-ia o pleito ao art.º 4º, n.º 1, alínea I ETAF. 

          O foro administrativo de Penafiel, todavia, declarou-se incompetente em razão da jurisdição, absolvendo o réu da instância (art.º 14º, n.º 2 CPTA). Estaríamos, in casu, perante uma ação de reivindicação (art.º 1311º CC), id est, uma ação jurídico-privada de caráter real, a qual seria da exclusiva competência dos tribunais cíveis.

          Nestes termos, determinou-se a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos (art.º 9º, n.º 1 e 10º, n.º 1 Lei n.º 91/2019). Por conseguinte, a questão central para a determinação do âmbito de jurisdição foi a de saber se o art.º 4º, n.º 1, alínea I ETAF abrangeria ações reais, nas quais em causa estaria uma atuação ilegítima e ofensiva de direitos reais consubstanciada por um ente administrativo. O Tribunal, posto isto, concluiu que “a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da AP. Se se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum”.

          Por outro lado, complementou-se que a relação material controvertida, “tal como é caracterizada pelo autor”, não se subsume em nenhuma das normas atributivas de jurisdição aos tribunais administrativos.


2.     Exame

 

          Diz-nos o art.º 4º, n.º 1, alínea I ETAF que compete à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime

          Aditada em 2015, esta alínea consagra a competência da jurisdição administrativa para dirimir os litígios nas situações de via de facto, as quais um ente administrativo, por meio de uma atuação material, comete uma ilegalidade grosseira em prejuízo de direitos ou liberdades fundamentais dos particulares[1]. Por conseguinte, a pretensão do legislador foi afastar a teoria da voie de fait, a qual possui subjacente a ideia de que um litígio resultante de dada atuação material administrativa ferida de ilegalidades graves pertenceria ao âmbito jurisdicional comum, afastando-se do juiz administrativo.

          Com origens na jurisprudência do Conseil d’État, a voie de fait administrative levava a equiparação do ente administrativo a um particular, de modo a possibilitar ao cidadão que teve seus direitos e liberdades fundamentais afetados todos os meios de defesa proporcionados pela ordem jurídica nas relações privadas, incluindo o recurso aos meios processuais civis[2]. A perda da natureza administrativa de tal atuação seria consequência de sua manifesta ilegalidade, insuscetível de relacionar-se com qualquer poder conferido à AP[3].

          Esta teoria, na ordem jurídica portuguesa, veio a ser invocada pelos tribunais comuns no intuito de legitimarem a sua competência para julgar a matéria[4]. Sua autoridade, contudo, veio a ser posta em causa com a RC de 1989, a qual consagrou a competência dos tribunais administrativos na resolução de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (art.º 212º, n.º 3 CRP). Em consequência, sendo certo que uma situação de via de facto consubstanciaria uma tal relação, pertencendo ao âmbito do Direito Público, seria de concluir, em teoria, a sua inclusão no âmbito jurisdicional administrativo.

          O legislador de 2015, todavia, face à relutância dos tribunais administrativos em afetar à sua competência tais casos[5], veio consagrar os elementos fundamentais para a caracterização da via de facto:

i.               Uma atuação material administrativa;

ii.             A existência de uma ilegalidade manifesta imputada a essa atuação material, podendo ser resultado da ausência de fundamento normativo, de uma omissão ou ilegalidade evidente do ato administrativo que a legitimou ou da existência de uma ilegalidade intrínseca à própria conduta material;

iii.            A violação de um direito fundamental resultante da atuação material.

          Mediante isto, é forçoso concluir a presença, no caso em análise, de uma situação proprietária das especificidades da via de facto, dado que (i) há a afetação do direito de propriedade de um particular, (ii) provocada por uma atuação material de um ente administrativo, a qual (iii) apresenta, em tese, uma ausência de fundamento normativo que legitime esta atuação. Assim sendo, a dúvida suscitada que determinou a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos tem subjacente apenas o modo como os pedidos foram configurados pelo autor, visto que a relação material também poderá conformar uma pretensão de caráter real, dado o direito de propriedade do particular levar à existência de uma situação jurídica de direito privado.

          Dito de outra forma, o objeto das pretensões poderá corresponder, por um lado, à defesa do direito de propriedade privada, ou, por outro, à condenação da atuação material administrativa[6]. No primeiro caso, estaremos perante a rei vindicatio (art.º 1311º CC), inerente à proteção de uma situação jurídico-privada, pertencente ao âmbito de jurisdição comum. Já no segundo, em contrapartida, pertencendo ao âmbito de jurisdição administrativa, estaremos perante uma ação de restabelecimento de direitos ou interesses violados (art.º 37º, n.º 1, alínea I CPTA), a qual tem em vista a condenação da AP à prática de atos ou omissões com o intuito de reconstituir a situação jurídica que deveria existir caso o ente administrativo não atuasse ilegitimamente[7].

          Posto isto, tendo o autor requerido o reconhecimento do direito de propriedade do imóvel, sendo tal a base de fundamento necessária para a integral procedência de suas pretensões, além da condenação à restituição do imóvel, pedidos característicos da ação de reivindicação, resta concluir que a relação material controvertida diz respeito à uma situação jurídica de Direito Privado, a qual, por não se subsumir ao art.º 4º, n.º 1, alínea I ETAF, nem se inserir na cláusula geral de relações jurídico-administrativas consagrada na alínea O do mesmo artigo, enquadra-se na competência residual dos tribunais judiciais (art.º 64º CPC).

          Nestes termos, sendo a competência ratione materiae dos tribunais comuns, consideramos conforme à decisão do Acórdão.

 

BIBLIOGRAFIA

 

Almeida, Mário Aroso de, e Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017;

 

Andrade, J. C. Vieira de, A “Via de Facto” perante o Juiz Administrativo in Cadernos de Justiça Administrativa, 104 (Março-Abril 2014), Braga, 2014

 

Gomes, Carla Amado de, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, Coimbra, 1999

 ‘Via de Facto’ e Tutela Jurisdicional contra Ocupações Administrativas Sem Título in Revista do Ministério Público, 150 (Abril-Junho 2017), Maia, 2017;

 

Echeveste, José Luis Burlada, La Vía del Hecho en el Derecho Administrativo Francés: Génesis, Desarrollo y Configuración Actual de la Théorie de la Voie de Fait, Bosch Editor, Barcelona, 2018;

 

Laubadère, André de, Venezia, Jean-Claude e Gaudemet, Yves, Traité de Droit AdministratifTome I, 11e édition, LGBJ, Paris, 1990

 

Pação, Jorge, O âmbito da jurisdição administrativa e considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do nº 1 do artigo 4º do ETAF in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Volume I, 5ª edição, AAFDL, Lisboa, 2020


Acórdão disponível em http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3aef17d53b81e9d58025840a003442d9?OpenDocument


João Pedro Villaça Felgueiras

N.º Aluno: 60966



[1] Neste sentido, Laubadère, André de, Venezia, Jean-Claude e Gaudemet, Yves, Traité de Droit AdministratifTome I, 11e édition, LGBJ, Paris, 1990, pp. 332; Echeveste, José Luis Burlada, La Vía del Hecho en el Derecho Administrativo Francés: Génesis, Desarrollo y Configuración Actual de la Théorie de la Voie de Fait, Bosch Editor, Barcelona, 2018, pp. 44-45.

[2] Neste sentido, Andrade, J. C. Vieira de, A “Via de Facto” perante o Juiz Administrativo in Cadernos de Justiça Administrativa, 104 (Março-Abril 2014), Braga, 2014, pp. 45.

[3] Veja-se, por um lado, o Arrêt Schneider (1940), no qual o Tribunal de Conflitos francês qualifica a via de facto como “une mesure insusceptible de se rattacher à l’application d’um texte législatif ou réglementaire” e, por outro, o Arrêt Guigon (1949), em que o Conseil d’État afirma que a via de facto seria “une mesure manifestement insusceptible d’être rattachée à l’exercice d’um pouvoir appartenant à l’administration”.

[4] Para uma excursão sobre a teoria da voie de fait na ordem jurídica portuguesa, Gomes, Carla Amado de, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 330 e ss.

[5] Para uma avaliação crítica desta temática, veja-se Gomes, Carla Amado, ‘Via de Facto’ e Tutela Jurisdicional contra Ocupações Administrativas Sem Título in Revista do Ministério Público, 150 (Abril-Junho 2017), Maia, 2017, pp. 94-105. Também, afirmando que “reinou uma incerteza jurisprudencial que constituiu justificação bastante para o esclarecimento realizado pelo legislador”, Pação, Jorge, O âmbito da jurisdição administrativa e considerações renovadas sobre as alíneas i), l) e n) do nº 1 do artigo 4º do ETAF in Comentários à Legislação Processual Administrativa, Volume I, 5ª edição, AAFDL, Lisboa, 2020, pp. 396.

[6] Considerando o modo como o autor configura o pedido determinante para a competência material dos tribunais, Pação, Jorge, op. cit., pp. 393-395.

[7] Neste sentido, Almeida, Mário Aroso de, e Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 259.

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