Comentário a Acórdão - A fronteira entre o âmbito de jurisdição administrativa e a administração judicial || Duarte Engana


    A discussão do âmbito de jurisdição administrativa prende-se, muitas das vezes, em saber se um litígio deverá ser resolvido por um tribunal administrativo ou por um tribunal judicial. Apesar de historicamente os tribunais judiciais dominarem a maioria dos litígios (sendo que era raro para os tribunais administrativos terem processos para decidir), a Reforma de 2002/2004 veio mudar este panorama, sendo cada vez mais atribuída a jurisdição mais matérias. Com esta primeira publicação será feita uma análise das matérias que cabem ao âmbito da jurisdição administrativa, tendo como base um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo correspondente ao processo 09/13[1].

    Há que fazer então uma análise do acórdão: quanto aos factos, verifica-se que estamos perante uma situação de falta de pagamento de uma renda pela ré ao Município de Faro, respeitante a um imóvel pertencente ao parque habitacional do Município. Ora, desde já, isto levanta uma questão fundamental: este contrato estaria no âmbito do direito público ou do direito privado? Ora, à primeira vista, diríamos que uma vez que se trata de um contrato de arrendamento, estaríamos aparentemente no âmbito do direito privado – no entanto, verificamos que este contrato foi estabelecido entre um particular e um órgão público. Ainda mais, aplicava-se aqui o Decreto-Lei nº 166/93, de 7 de Maio, levantando algumas questões acerca da natureza deste litígio. Temos então duas questões presentes: qual é a natureza deste contrato e qual a resposta dos tribunais para esta questão?

    Ora, como refere o acórdão, este processo foi primeiro intentado no Tribunal da Comarca de Faro (tribunal judicial), só depois sendo decidido que teria competência para julgar o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, requerendo o Município de Faro a remissão para o Tribunal Judicial de Faro, que foi julgado incompetente em razão de matéria. Só posteriormente foi remetido para o Tribunal de Conflitos e apreciado também pelo Supremo Tribunal Administrativo. Como podemos ver, esta situação apenas demonstra que ainda existem dúvidas na fronteira entre a jurisdição judicial e a jurisdição administrativa.

    Hoje em dia, o Direito Administrativo já não é “especial” em relação ao Direito Civil, sendo que é regido por normas autónomas e figuras próprias[2]. O professor Vasco Pereira da Silva afirma que desta forma haverá então uma maior especialização dos juízes que se encontrarão mais preparados para a resolução destes litígios – logo, esta forma de organização dos tribunais portugueses traz consigo vantagens: uma maior acuidade na resolução de problemas e impede-se também a acumulação de processos judiciais, sendo que serão repartidos pelas várias jurisdições. Mas afinal como é feita esta divisão?

    A resposta óbvia encontra-se no artigo 211º/1 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP): o que pertencer ao Direito Administrativo caberá na jurisdição administrativa e o resto caberá aos tribunais judiciais. No entanto, verifica-se que não há um critério material objetivo, visto que o âmbito da justiça administrativa não se basta com o Direito Administrativo[3] – o âmbito estende-se para além disso e ficamos com “zonas cinzentas”. No entanto, vem o artigo 212º/3 CRP incluir as relações jurídicas estabelecidas entre os particulares e entidades administrativas e também entre sujeitos administrativos[4]. Este artigo não deverá ser visto como uma proibição mas sim como o modelo típico[5], sendo que poderá haver desvios e adaptações, desde que o núcleo se mantenha.

    Mas ainda fica a dúvida se os tribunais administrativos só podem julgar questões administrativas e todas as questões administrativas: mas rapidamente encontramos uma “resposta”, regulada nos artigos 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF). Tendo em conta o artigo 4º ETAF, este estabelece uma lista de matérias que correspondem aos “litígios emergentes das relações administrativas e fiscais” – assim é possível retirar pontos comuns do que está presente no artigo 212º/3 CRP, mas também acrescentar algumas novas matérias.

    Voltando agora ao ponto central desta publicação, no acórdão em questão, o Tribunal de Conflitos (cuja opinião foi seguida pelo STA), aponta como ponto de partida o critério da existência de um litígio emergente de uma relação jurídico-administrativa (artigo 212º/3 CRP) como ponto de partida, mas que precisa de ser complementado e concretizado pela lei ordinária. Aqui teremos o ETAF, que reforça este critério através do artigo 4º, nomeadamente a alínea f) do nº1, que nos dá resposta ao caso apresentado.

    Respondendo às perguntas que coloquei no início da publicação: qual é a natureza deste contrato e qual a resposta dos tribunais para esta questão? O contrato de arrendamento em causa está submetido ao regime da renda apoiada, sendo que se aplica o Regulamento de Acesso e Gestão do Parque Habitacional do Município de Faro (Decreto-Lei nº 166/93, de 7 de Maio). Portando, aqui discutiu-se se este seria um verdadeiro regime de direito público ou se este regime também se pode aplicar a negócios privados. Acabou por se concluir que tratará da primeira opção, sendo que contem normas de Direito Administrativo, de acordo com orientações passadas e apresentando argumentos como as finalidades públicas do diploma. Posto isto, podemos entender agora a recondução ao artigo 4º/1/f) na sua segunda parte do ETAF, pois estamos perante um contrato em que exista uma norma de direito pública que regula aspetos do seu regime.

    Posto isto, há que ter em conta várias coisas: estamos perante claramente uma nova era para o Direito Administrativo, tendo em conta o que sucedia antes da Reforma de 2002/2004. Podemos concluir que o legislador ordinário, nos dias de hoje, dá uma solução mais clara em relação à definição do âmbito da jurisdição administrativa, solução essa que é efetivamente aplicada pelos nossos tribunais, verificando-se cada vez mais que os tribunais administrativos estão a funcionar em pleno. Há que ter noção que esta nova era tem muitos efetivos aspetos positivos no que trata o Contencioso Administrativo, uma vez que nos é possível entender e traçar a fronteira entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos – o que não traz só certeza e segurança para os particulares, mas também para os juízes de ambas as jurisdições. Por um lado, os tribunais administrativos terão uma multiplicidade de litígios que poderão ser decididos, e por outro lado, teremos uma menor concentração de processos nos tribunais judiciais, sendo que estes poderão ser resolvidos noutra jurisdição. No entanto, há que ter em atenção as “zonas cinzentas”, como será o caso deste processo, mas como vimos, a doutrina tem vindo a permitir uma resposta clara e assertiva, permitindo então a resolução destes problemas.

            BIBLIOGRAFIA

·         ANDRADE, José Vieira de, “A Justiça Administrativa”, Almedina, Coimbra 2012

·         SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, Coimbra 2013



[2]  SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, Almedina, Coimbra 2009 p. 247

[3] ANDRADE, José Vieira de, “A Justiça…”, Coimbra, 2012, p. 90

[4] ANDRADE, José Vieira de, “A Justiça…”, Coimbra, 2012, p. 47

[5] ANDRADE, José Vieira de, “A Justiça…”, Coimbra, 2012, p. 94


Duarte Engana, nº 60928

18/10/2021

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