Brevíssimo Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02-11-2011
I – A competência dos Tribunais Administrativos é, desde logo, definida pelo art. 212º/3 CRP. Ademais, resulta claro do art. 4º/3 al. a) do ETAF que a jurisdição administrativa e fiscal está impossibilitada de dirimir litígios que se reportem a atos praticados no exercício da função política e legislativa. De facto, numa sociedade democrática, regida pelo princípio de separação de poderes, cabe aos cidadãos manifestar o juízo que fazem destas matérias, aquando dos atos eleitorais. Porém, a dificuldade de traçar os limites da jurisdição administrativa prende-se, precisamente, com a dificuldade de qualificar certos atos como emergentes da função legislativa, e sobretudo, política. Releva, ainda, a delimitação da competência dos referidos Tribunais no tocante à responsabilidade extracontratual do Estado, nomeadamente naquela que decorre dos referidos atos legislativos e políticos. Veremos, ainda, que subsistem tendências tão antigas quanto nefastas na sindicância que os Tribunais Administrativos (não) fazem de certos atos da Administração.
II – Vejamos o caso
suscitado junto do STA de um particular que demanda o Estado com base numa
omissão de atos diplomáticos que este último deveria ter praticado. O autor
afirma que, face à sua expulsão do território angolano, sem qualquer respeito
pelo princípio do contraditório (entre outros), o Estado português não tomou qualquer
medida, salvo a remissão de uma mera nota verbal para a qual nunca obteve
resposta. Alega, também, que existe um nexo de causalidade adequada entre a
omissão do Estado e a lesão que sofreu, na sequência da sua expulsão.
III – O autor entende que
nem todos os atos de proteção diplomática são atos políticos, sendo a atuação
da Administração, in casu, enquadrável na função administrativa do Estado. Os danos
causados por esta atuação seriam, na visão do autor, também subsumíveis ao
âmbito da jurisdição administrativa. Porém, tal entendimento não foi partilhado
pelos Juízes das primeira e segunda instâncias, que se declararam
incompetentes, motivando o recurso interposto pelo autor para o STA.
IV – Os Juízes
Conselheiros referem que “não interessa, aqui, proceder a uma teoria geral
sobre o que é atuação política” [1], limitando-se a avançar a
doutrina que infra se expõe, a título exemplificativo. M. AROSO DE
ALMEIDA nota que “doutrina e jurisprudência têm proposto fórmulas abstratas […]
[que] só por si escassa utilidade possuem”, mas avança critérios para
densificar os elementos que compõem esta função. Conclui que “é de adotar um
conceito restrito de atos praticados no exercício da função política, que,
desde logo, os restrinja a atos dos órgãos superiores do Estado”[2]. Teria sido pertinente que
o Tribunal tivesse, pelo menos, recordado este entendimento.
V – De seguida, o
Tribunal descarta, liminarmente, a ideia do autor segundo a qual se estaria
perante atos da função administrativa, para tal recorrendo à doutrina de M.
AROSO DE ALMEIDA que explica que “é, entretanto, possível agrupar os atos
praticados no exercício da função política em duas grandes categorias: 1ª Atos respeitantes
à ‘política externa’ do Estado ou às suas relações exteriores e à segurança
externa: […], apresentação e troca de notas, […], atos de proteção diplomática
e consular de nacionais no estrangeiro […]”[3]. Entende-se que “em suma,
a atuação/omissão que se apresenta como causa de pedir na Acão é, pelo menos no
essencial, uma atuação/omissão política, no quadro do artigo 197.º, n.º 1, j),
da Constituição da República”.
VI – Todavia, é de
estranhar que os Juízes Conselheiros não se tenham pronunciado sobre um ponto
essencial na argumentação do autor. Este socorre-se da doutrina para defender a
ideia de que a Constituição impõem uma sujeição da Administração às garantias
constitucionais, em matéria de direitos fundamentais, mesmo no exercício de
funções políticas. Admite M. GALVÃO TELES que “a força dirigente dos direitos
fundamentais relativamente ao poder executivo impõe-se mesmo perante os
tradicionais atos de governo, praticados no exercício de uma função política ou
governamental”[4].
E, ainda, apesar do autor não lhe fazer referência, é da maior pertinência
atender a J. LOPES DE SOUSA quando escreve que “na verdade, o art. 20.º, n.º 5,
da CRP, com a amplitude de princípio geral sobre direitos fundamentais, […] trata-se
de uma norma de aplicação geral em matéria de direitos fundamentais, que revela
uma opção constitucional pela primazia dos direitos, liberdades e garantias
pessoais e pela sua tutela efetiva e atempada contra quaisquer ameaças ou
violações pelo que ela não pode deixar de ser aplicada também nos casos em que
a ofensa provém de um ato que seja qualificável como ato político, à face do
critério referido”[5].
Este juiz jubilado do STA dá como exemplo a declaração de estado de sítio ou
emergência que “não poderá deixar de ser sindicável pelos tribunais na parte em
que contender com concretos direitos liberdades e garantias pessoais,
primacialmente, no que concerne à aferição da sua contenção dentro dos limites
legais que nesta matéria lhe são impostos pelo art. 19.º, n.º 5, da CRP”[6]. Será que o silêncio do
STA é mais uma manifestação dos ““traumas do nascimento” e da “infância
difícil” do Contencioso Administrativo”[7]? Afigura-se-nos claro que
a Administração não pode, quando pratica atos políticos, ter uma blindagem
absoluta, muito menos que a mesma decorra de uma visão errada do princípio da
separação de poderes. Uma doutrina que concluísse pela liberdade total da Administração
no âmbito político, à revelia dos direitos fundamentais, seria manifestamente
inconstitucional, tendo em conta, entre outros, os artigos supra
referidos.
VII – Porém, em sentido
que diverge dos Tribunais a quo, refere-se que o Tribunal apenas se poderia
declarar incompetente depois de se debruçar sobre a questão, porventura menos
consensual, de saber se o litígio tendo por objeto a responsabilidade civil
resultante deste ato político pertence ou não à jurisdição administrativa. À
data, não havia consenso doutrinário, mas já V. PEREIRA DA SILVA, entre outros,
defendia que “mais do que argumentos de ordem formal, devem valer razões de
ordem material e de espírito do sistema, as quais apontam claramente no sentido
da inclusão da responsabilidade da função política no Contencioso
Administrativo”[8].
O Tribunal optou por seguir esse entendimento, considerando que na jurisdição
administrativa cabe a totalidade dos litígios cujo objeto seja a
responsabilidade civil extracontratual. Poderíamos rematar, como o fizeram M.
AROSO DE ALMEIDA e D. FREITAS DO AMARAL, dizendo que “os tribunais
administrativos passam a ser competentes para dirimir todas as questões de
responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, não
só por danos resultantes do exercício da função administrativa, mas também por
danos resultantes do exercício das funções política e legislativa ou do
funcionamento da administração da justiça”.[9] Hodiernamente, a discussão
perdeu relevância, tendo a lei passado a referir, expressamente, em 2015, no
art. 4º/1 al. f) “danos resultantes do exercício das funções política,
legislativa e jurisdicional”.
VIII – Em suma, queda
claro que o legislador tem dado passos significativos na luta que leva contra
os traumas que estiveram na origem do Contencioso Administrativo – falamos do
alargamento da jurisdição administrativa para abarcar todos os litígios
referentes à responsabilidade extracontratual do Estado. Porém, as marcas
deixadas pelos referidos traumas são profundas e notórias, ainda hoje. O
Supremo Tribunal Administrativo continua a negar-se a julgar a Administração, recusando
a sua competência para toda a função política da Administração, deixando à
mesma a possibilidade de agir de forma fundamentalmente livre. A falta de sindicância
de atos não só ilegais, mas também inconstitucionais, representa hoje mais uma
batalha nesta já longa guerra em que os particulares continuam a ser vítimas
das atuações irrestritas da Administração.
[1] Cfr.
Acórdão do STA de 2 de Novembro de 2011, Proc. 0893/09.
[2] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2021, p. 197.
[3] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, op. cit., 2021, p. 198.
[4] MIGUEL
GALVÃO TELES, “Inconstitucionalidade pretérita”, Nos Dez Anos da
Constituição, organização de JORGE MIRANDA, 1987.
[5] JORGE
LOPES DE SOUSA, “Poderes de cognição dos tribunais administrativos
relativamente a atos praticados no exercício da função política”, Julgar
nº3, 2007, p. 135.
[6] JORGE
LOPES DE SOUSA, idem.
[7] VASCO
PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2013, p. 15
[8] VASCO
PEREIRA DA SILVA, op. cit., p. 528.
[9] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA e DIOGO FREITAS DO AMARAL, Grandes Linhas da Reforma do
Contencioso Administrativo, 2007, p. 36.
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