BREVE ANOTAÇÃO SOBRE O ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA - a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, o Ac. do Tribunal de Conflitos (proc. 017/08) e as relações jurídicas multilaterais - António Pereira (60903)

 

BREVE ANOTAÇÃO SOBRE O ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA - a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, o Ac. do Tribunal de Conflitos (proc. 017/08) e as relações jurídicas multilaterais - António Pereira (60903)

 

Sumário: I. Considerações gerais; II. Acórdão do Tribunal de Conflitos, proc. 017/08 (Fonseca Ramos), de 09-12-2008

Palavras-chave: Administração Pública; aplicação de normas públicas; direitos fundamentais; jurisdição administrativa e fiscal; jurisdição comum; particular; relação jurídica administrativa; reserva absoluta;

 

            I. Considerações gerais

            A competência em razão da jurisdição é um pressuposto processual relativo ao Tribunal (cujo preenchimento, a par de outros, é essencial para se afirmar a competência do Tribunal para julgar o litígio em questão) que esclarece a questão de saber quando é que uma ação deve ser proposta perante jurisdição administrativa e fiscal e não perante os tribunais judiciais[1].

            O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é identificado no art. 212.º/3, CRP por referência às ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

            Ora, seguindo a doutrina e jurisprudência maioritárias, o âmbito da cláusula de jurisdição administrativa prevista nesse artigo não é absoluta: por um lado, não será verdade que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, em alternativa, também não serão só estes tribunais que poderão julgar tais questões. A referida cláusula é, pois, de acordo com esta corrente, suscetível de comportar compressões e alargamentos desde que o seu núcleo fundamental não seja ferido[2].  

            Da nossa parte, acompanhando Paes Marques, cremos que «esta flexibilização deve ter-se por excessiva, porquanto a jurisdição administrativa deve ser qualificada como uma “jurisdição de sucessiva definição imperativa”, contrariamente à jurisdição comum, em que o juiz estabelece a definição de uma relação jurídica controvertida cujo conteúdo se não encontra imperativamente determinado»[3].

 

            II. Acórdão do Tribunal de Conflitos, proc. 017/08 (Fonseca Ramos), de 09-12-2008 - deficiência doutrinal

            O legislador, deparando-se com as dificuldades de delimitação do âmbito dos litígios jurídico-públicos do âmbito dos litígios jurídico-privados, decidiu recorrer à figura da relação jurídica administrativa para regular a matéria da jurisdição dos tribunais administrativos.

            No entanto, onde esta figura encontra desde logo problemas de aplicação é nas situações em que o litígio diz respeito a relações jurídicas que não assuma natureza bilateral.

            É, em todo o caso, o que se verifica no caso em análise. Pela sua reduzida extensão, transpomo-lo para aqui:

            I - Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas.

               II - Pese embora, a peculiar natureza da ação popular, a que subjaz a defesa de interesses públicos, ainda que exercida por um particular, não pode considerar-se que esteja em causa uma relação de natureza administrativa, nem quanto aos sujeitos, nem quanto ao objeto, mau grado a conexão que existe com o interesse público e a defesa de interesses difusos que a ação postula.

               III - O facto de a pretensão do autor ser exercida contra um particular, visando a defesa do que considere um bem do domínio público autárquico, não permite que se qualifique a relação jurídica como administrativa, o que exclui, desde logo, a competência da jurisdição administrativa.

              

            Neste litígio estava em causa a pretensão de um particular que visava a defesa de um bem do domínio público (um caminho público) e obter a condenação do particular que o ocupava esse mesmo caminho a desimpedi-lo - a questão que aqui se colocou, perante o Tribunal de Conflitos, foi, pois, a de saber se esta relação consubstanciava uma relação jurídica administrativa, com a respetiva consequência de o litígio se submeter à jurisdição dos tribunais administrativos.

            Decidiu o tribunal em questão que, pelo facto de a ação se dirigir contra outro particular, “não permite que se qualifique a relação jurídica como administrativa, o que exclui, desde logo, a competência da jurisdição administrativa”.

            É de nossa opinião que deve afastar-se definitivamente uma perspetiva da relação jurídica administrativa de caráter estatuário, segundo o qual o critério de qualificação seria sempre a presença da Administração Pública ou outro ente que exerça funções materialmente administrativa num dos polos da relação[4].

            Uma tal afirmação conduziria, erradamente, à ideia de que um atentado aos direitos fundamentais entre “autênticos privados”[5] seria sempre resolvido junto dos tribunais judiciais - e o que realmente deve interessar para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa é a natureza das normas que regulam o comportamento dos sujeitos em causa; nesse sentido, se à luz do ordenamento jurídico administrativo um sujeito privado atuar de forma ilícita, deverão ser, pois, os tribunais administrativos a dirimir o litígio por forma a conceder tutela aos bens jurídicos protegidos do outro sujeito.

            O que esta decisão faz, é, pois, confundir legitimidade processual das partes com âmbito de jurisdição, conceito que não nos cabe analisar por agora.

            A nossa conclusão de acordo com a qual a questão que se deve colocar é se, a ação, tal como configurada pelo autor, terá solução mediante a aplicação de normas públicas[6][7], é alicerçada num aspeto comummente invocado para a afirmação da legitimidade e fundamentação da jurisdição administrativa: a necessidade de assegurar a de entregar o julgamento das questões de direito administrativo a quem possa ter um conhecimento exato deste direito e da sua aplicação; os tribunais comuns, especializados em matéria cível e no penal, não possuem esta aptidão e estão mal preparados para o exercício de uma função pretoriana, que é inevitável no julgamento daquele tipo de questões[8].

           Além do mais, concluindo, serão sempre as sentenças claras e bem fundamentadas que permitem que o as partes fiquem convictas da boa decisão do litígio - e só, nesta área, terão a competência técnica e argumentativa para tal os juízes administrativos.

        

                                                                                                                      -   António Pereira (60903)                


[1] M. Aroso De Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2020, reimpr., p. 159.

[2] Quanto a esta matéria, há, no entanto três posições diferentes: i) a tese da reserva flexível, defendida, entre nós, com maior expressão, por Sérvulo Correia; ii) a tese da reserva absoluta temperada pelo elemento sinéptico, defendida por Mário Esteves de Oliveira; iii) tese da reserva absoluta, defendida por Gomes Canotilho/Vital Moreira.

[3] F. Paes Marques, Conflito entre Particulares no Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2019, p. 157.

[4] F. Paes Marques, Conflito entre Particulares no Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2019, p,. 164.

[5] Idem.

[6] Idem. 

[7] É também com base nesta conclusão que Mário Aroso de Almeida delimita o âmbito de jurisdição no domínio das agressões ambientais causadas por particulares “O novo contencioso administrativo em matéria de ambiente”, RJUA, n.º 18/19, 2003, p. 117 e ss. 

[8] https://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2018/07/CEDIS-working-paper_Direito-e-Justi%C3%A7a_O-fundamento-da-jurisdi%C3%A7%C3%A3o-administrativa.pdf

 

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