Autonomia da Jurisdição Administrativa: Breve comparação entre sistema português e o anglo-saxónico
No que toca ao âmbito da jurisdição administrativa, conseguimos facilmente
reconhecer esta questão enquanto criadora de variadas posições e modelos de
processo administrativo relativamente à sua autonomia, ao longo do decorrer da
história. Sendo esta uma área de grande relevo não só na vida dos particulares,
mas também nas relações privadas, dirimindo sobre matérias se educação,
segurança social, transportes, urbanismo, etc.
Já em 1976 esta discussão era nos apresentada pelo Prof. Afonso
Queiró, que, no debate referente ao julgamento de litígios entre a
administração e os particulares, do dever ser (ou não) de jurisdição autónoma,
o autor, defendia que só assim conseguiríamos assegurar uma verdadeira
separação de poderes. Sendo essa separação garantida pela entrega do julgamento
desses mesmos litígios a “quem possa ter conhecimento exato desse direito”.
Argumentando assim, por uma existência de uma justiça exercida segundo o princípio
da especialização dos juízes. Posição esta que teremos que ter em conta, ao
admitir as limitações humanas de um juiz, que opta por uma carreira mais generalizada,
para variados ramos de Direito.
Os sistemas de contencioso administrativo
que iremos analisar distinguem-se historicamente, dada a sua unidade (no caso
do Reino Unido), ou dualidade (no caso de Portugal, com influências francesas)
das jurisdições, sendo que o início da sua aproximação remota para o séc. XX.
Relativamente ao sistema jurídico português,
este atualmente opta por uma preferência no aprofundamento da autonomia de
jurisdição administrativa face ao Direito Comum e ao processo judicial, demonstrando
que o legislador de 1989 poderá ter querido reforçar que esta ideia de
dualidade da jurisdição, teria em si associação ao princípio de especialização
(que referimos anteriormente), com a revisão constitucional. Essa mesma revisão
que originou os artigos 209º nº 1 b) e 212nº3, aplicando a matéria de litígios administrativos
exclusivamente aos tribunais administrativos. Sendo este preceito também apoiado
pelo ETAF, que enumera esses litígios que deveremos considerar incluídos no âmbito
da jurisdição administrativa (art4º nº1 e 2) e aqueles que deveremos excluir (art
4º nº3 e 4).
Em Portugal, vigora o sistema da administração
executiva desde 1832, permitindo que regime adotasse as suas particularidades.
Entre elas, é difícil de passar despercebida a centralização dos poderes administrativos,
ou a sujeição da administração aos tribunais administrativos -que ressalva,
novamente, a separação de poderes dentro do seu funcionamento-, o facto desta
se subordinar ao Direito administrativo, tendo um ramo específico do Direito que
a regula, enquanto no caso britânico, por exemplo, existe subordinação ao
chamado Direito Comum, ou “Common Law”.
Vigora também (ainda que se pondere
futuras alterações) o privilégio da execução prévia. O Direito administrativo
confere poderes à administração sobre os particulares, a um nível superior do
que os restantes ramos do Direito. Tem o poder de autotutela, tendo liberdade tanto
para determinar qual o Direito a aplicar, como tem também liberdade de execução
da sentença, sem ser necessário recurso a tribunal superior. Já no sistema inglês,
existe hétero-tutela, já sendo necessária a intervenção do tribunal nesse âmbito.
Ao contrário daquilo que acontece no
Reino Unido, o sistema português atribui garantias aos administrados, o que se
traduz no facto do Estado se responsabilizar por todos os atos praticados pelos
seus funcionários e em ressarcir os particulares.
Além do que analisámos
anteriormente, existem mais traços diferenciadores com o modelo judiciário Anglo-saxónico
que se considera importante de mencionar. Nomeadamente, o facto de que em Inglaterra
não nos deparamos com um ramo específico de Direito aplicável (face ao nosso
Direito administrativo), mas sim uma série de normas costumeiras e uma certa
influencia da jurisprudência. A sua administração é descentralizada, suportando
menos poderes perante os particulares, face ao sistema executivo. No sistema britânico,
as questões de administração estão sujeitas a tribunais comuns- “Courts Of Law”
- daí a sua unidade de jurisdição. Enquanto isso, o nosso sistema, é
caracterizado pela sua dualidade, havendo tribunais administrativos que regulam
litígios administrativos, sem serem submetidos aos tribunais judiciais portugueses,
tal como mencionámos em cima.
Contudo, partindo para uma reflexão
final, poderemos considerar que tanto um sistema, como outro, terão bastante
margem disponível para aperfeiçoamento. Em Portugal, por exemplo, vigora
atualmente um problema de congestionamento e morosidade de justiça que, deveria
ter melhorado com a autonomia da jurisdição administrativa. Torna-se importante
recordarmos de quando o Prof. Vasco Pereira da Silva em 1997 se expressou sobre
a questão, defendendo que estes novos instrumentos poderiam ser a chave para
progredir na celeridade e qualidade do processo administrativo. Contudo, existe
uma notável escassez de infraestruturas e recursos humanos face à elevada entrada
de processos nesses novos tribunais, sendo necessário efetuar redistribuição de
processos. Aquilo que se verifica na prática, consequentemente, consiste numa
continuação de atribuição aos tribunais judiciais e comuns a competência para
julgar sobre litígios administrativos.
Já no Reino Unido, surgiu recentemente a figura dos “Administrative
Tribunals”, órgãos administrativos, integrantes na High Court, a
quem são atribuídas funções de julgamento, ainda que não sejam vistos como
verdadeiros tribunais, ou sequer verdadeiros juízes. Resultando assim, no facto
de os restantes tribunals continuarem com a mesma estrutura e
funcionamento de ordem administrativa, graças ao princípio constitucional que
impõe que a “ultima palavra” seja sempre de um tribunal. Aquilo que começou por
ser um passo em direção da especialização da justiça administrativa também no
sistema judiciário, acabou por sofrer dos mesmos problemas, verificando-se uma
enorme necessidade de uma maior independência dos tribunais administrativos. Por
agora, esta especialização apenas se verifica nos tribunais de 1ª Instância,
uma vez que na 2ª Instância, os litígios já são acolhidos nos tribunais comuns,
ao contrário daquilo que acontece em Portugal, que a especialização dos
julgamentos administrativos se verifica em todas as instâncias.
Finalizando, ambos os sistemas estão cada vez mais próximos e
semelhantes, graças aos efeitos da Europeização (ainda que, atualmente, o
Brexit coloque alguns entraves nesta questão). Segundo o Prof. Vasco Pereira da
Silva, aquilo que acaba por se tornar mais importante, é de facto, o grau de
especialização, do que propriamente os diferentes sistemas adotados de unidade ou
dualidade. Esta discussão acaba por se tornar, com o passar do tempo, maioritariamente
num debate histórico, ainda que Portugal se destaque por efetivamente ter o
Direito Administrativo, uma fonte própria que regule os seus litígios.
Bibliografia:
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(2020). “Manual de Processo Administrativo”. Almedina. 4ª Edição. Reimpressão.
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(2017). “O alargamento do âmbito da jurisdição
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Profissionalizante Pré-Bolonha em Ciências Jurídico-Forenses, Faculdade de
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Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37132/1/ulfd135625_tese.pdf
GOUVEIA
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CÂNDIDO OLIVEIRA,
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Disponível em:
https://www.icjp.pt/sites/default/files/media/ebook_processoadministrativoii_isbn_actualizado_jan2012.pdf
Rosana Ferreira, nº58322, 4º ano, TA, subturma1
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