Contraordenações ambientais fora da jurisdição administrativa – até quando?

Na sequência de um auto de notícia levantado pela PSP, em 2015, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo puniu uma arguida pela prática de uma contraordenação, prevista nos artigos 5.º, n.º 1 e 67.º, n.º 2, da alínea a), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, numa coima de 6.000,00 €. A arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa. No entanto, tanto o Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Local – Secção Criminal, como o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa julgaram-se incompetentes em razão da matéria.

Este conflito negativo foi dirimido pelo acórdão do Tribunal dos Conflitos (1), proferido a 26/10/2017 (Processo n.º 031/17), tendo-se concluído que, neste caso, a jurisdição comum seria a competente, uma vez que “aos Tribunais Administrativos e Fiscais só é atribuída competência para apreciar e decidir as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, por contra-ordenação ambiental, caso o mesmo facto dê origem à aplicação, pela mesma entidade, de decisão por violação de normas do ordenamento do território, e/ou por contra-ordenação por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”.

Esta decisão está em linha com o preceituado no artigo 75.º-A da Lei 50/2019, de 29 de agosto. O que em conjugação com o artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), nos permite concluir que a jurisdição administrativa é competente para decidir sobre “impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”, ordenamento do território e ambiente, sendo que no caso deste último tem que ser cumulado com um dos outros dois. Esta solução legal é bastante questionável.

A aplicação de coimas por uma autoridade administrativa consubstancia uma relação administrativa (2), por isso põe-se, antes de mais, a questão de saber se esta delimitação da jurisdição administrativa não vai contra o artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.

Este argumento de violação da Constituição cai em parte tendo em linha de conta o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2008 (Processo n.º 253/08) (3) que, uma vez mais, afirma que a competência para conhecer dos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas não é de reserva absoluta da jurisdição administrativa.

A remissão dos processos contraordenacionais para a jurisdição comum deve-se, segundo FREITAS DO AMARAL e AROSO DE ALMEIDA (4) pelas insuficiências dos tribunais administrativos.

Parece-me que faria todo o sentido que as contraordenações em matéria do ambiente fossem inseridas e até mesmo aditadas à alínea l) do n.º1 do artigo 4.º, tal como estava previsto no anteprojeto de 2014.

Na altura, a ideia foi abandonada porque se entendeu que a sua inclusão implicaria a “apreciação de questões várias, tais como as inerentes aos processos que têm por objeto a impugnação de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social noutros domínios”. No mesmo documento, o Governo afirmou pretender a integração progressiva destas matérias no “âmbito da referida jurisdição, à medida que a reforma dos tribunais administrativos for sendo executada”.

A verdade é que, passados seis anos, as contraordenações ambientais, na sua maioria, encontram-se fora da jurisdição administrativa por falta de recursos.

Não obstante, nesta matéria, estamos perante uma relação jurídico-administrativa, argumento ao qual se adiciona o facto de existir um juízo de competência especializado (Juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território), o que justificaria facilmente por um princípio de especialidade que estes processos fossem remetidos para a jurisdição administrativa.

Fica, então, a pergunta: Quem melhor para conhecer das impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente que os Tribunais Administrativos e Fiscais?

(1) Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 26/10/2017 (Processo n.º 031/17) - Acordão do Supremo Tribunal Administrativo (dgsi.pt)
(2) Gomes, Vitor, “As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais” in Cadernos de Justiça Administrativa, setembro/outubro 2008, pp.6-14
(3) Acórdão n.º 522/2008 do Tribunal Constitucional (Processo n.º 253/08) - TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 522/2008 (tribunalconstitucional.pt)
(4) Freitas do Amaral, Diogo e Aroso de Almeida, Mário, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, Almedina, 2002, p.24

Outra bibliografia:

David, Sofia, “A Tramitação da Fase Judicial das Contra-ordenações Urbanísticas”, in Contraordenações nos Tribunais Administrativos, outubro 2019, pp.135-185

Gomes, Carla Amado, Tutela Contenciosa do Ambiente, Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2019, pp.5-9

Gomes, Carla Amado e Oliveira, Heloísa, Tratado do Direito do Ambiente, vol.I, Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2021, pp.499-584

Mascarenhas, Sofia, “O alargamento do âmbito da jurisdição administrativa aos ilícitos contraordenacionais”, Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2017, pp.49-62

Rebelo, Joana Raquel Pires, “As Contra-ordenações Administrativas em face das novas tendências do Direito Administrativo – a ERSE como caso de estudo”, Dissertação de Mestrado, Universidade de Coimbra, 2015, pp.19-48

Bárbara Granado, nº de aluna: 60885

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