Análise de Acórdão - Âmbito da Jurisdição Administrativa
Relativamente aos factos, o acórdão de 30/03/2017 [1] recai sobre um caso de ação administrativa comum de impugnação de um ato administrativo constante da decisão do vereador da área funcional dos Serviços Municipalizados de Saneamento Básico de Viana do Castelo, que lhe aplicou uma coima de 400,00€.
A ação aqui em causa foi instaurada a 3 de fevereiro de 2016 no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga contra o Município de Viana do Castelo onde o autor pede a nulidade ou anulabilidade do ato que aplicou a coima e, nesta sequência, o Município de Viana de Castelo apresentou contestação onde deduziu a exceção de incompetência absoluta do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. Deste modo, a questão é a de saber qual é o tribunal competente para apreciar esta ação.
O Tribunal Administrativo declarou a sua incompetência absoluta para conhecer esta questão com fundamento no art.4º, nº1, l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) que estabelece a competência destes tribunais para conhecer das “impugnações de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”. Contudo, esta norma apenas começou a vigorar em setembro de 2016 pois foi alterada pelo Decreto-Lei nº214-G/2015, como iremos ver mais adiante. Posto isto, o processo foi remetido para o Tribunal Judicial de Viana do Castelo que proferiu um despacho em que declarava que com a alteração feita pelo o Decreto-Lei nº214-G/2015 ao art.4º, nº1, l) do ETAF, o Tribunal Administrativo já era competente para conhecer a causa, declarando, assim, a sua incompetência absoluta.
Assim sendo, o Ministério Público remete os autos para o Tribunal dos Conflitos para resolver a questão de saber qual é a jurisdição competente. O tribunal deu o seu parecer no sentido de que o tribunal competente seria o Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Instância Local, Secção Criminal , uma vez que a ação foi instaurada a 3 de fevereiro de 2016 e a atribuição de competência ao Tribunal Administrativo para conhecer a questão em causa só ocorreu com alteração feita pelo Decreto-Lei nº214-G/2015 que vigorou a partir do dia 1 de setembro de 2016.
Em suma, estamos perante um caso em que o Autor pretende impugnar uma decisão administrativa que lhe aplicou uma coima no âmbito de um processo de contraordenação. Segundo o art.4º, nº1, l) do ETAF, na sua redação alterada pelo Decreto-Lei nº214-G/2015, os Tribunais Administrativos seriam os competentes. No entanto, como referido anteriormente, esta alteração ainda não tinha entrado em vigor no momento da propositura da ação, pelo que os Tribunais Administrativos e Fiscais não detinham competência para o conhecimento da ação proposta. Neste sentido, o Tribunal dos Conflitos decidiu, e bem, que o Tribunal com competência seria o da jurisdição comum, mais concretamente, o Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
Cabe agora perceber o porque e que impacto teve a alteração do art.4º do ETAF, mais precisamente, a alínea l), do nº1.
O art.212º/3 da Constituição da República Portuguesa diz-nos que aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das ações e recursos que tenham por objeto litígios que derivem de relações jurídicas administrativas e fiscais. Por sua vez, o art.1º, nº1 do ETAF, estabelece que “ Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.” Podemos perceber, com base nestes dois artigos, que a competência dos tribunais administrativos e fiscais depende dos “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”, ou seja, aquelas derivadas de atuações materialmente administrativas praticadas por órgão da administração pública.
Como mencionado anteriormente, em 2015 houve a tão esperada reforma do contencioso administrativo que alterou o ETAF e, em particular, o art.4º. Na versão de 2002 do ETAF, o art.4º estava estruturado como sendo uma enumeração exemplificativa dos litígios cuja apreciação competia aos tribunais administrativos e fiscais, passando a ter, com a alteração, um caráter taxativo. Foi intenção clara da reforma de 2015 o alargamento do âmbito de jurisdição administrativa a todos os litígios que pela sua natureza fossem relações jurídico administrativas.
Passando agora para a análise da alínea l), nº1, art.4º que é mencionada e analisada pelo acórdão, podemos averiguar que o anteprojeto de revisão do CPTA e do ETAF era previsto um alargamento da jurisdição de forma a dar competência aos tribunais administrativos à impugnação de decisões da administração pública que apliquem coimas, no âmbito de mera ordenação social, não só em matéria de urbanismo, mas também em outras matérias, como por exemplo, em matéria do ambiente. No entanto, o Governo decidiu não colocar essas matérias na proposta legislativa, justificando que a sua intenção seria introduzir estas matérias na jurisdição administrativa de forma progressiva. Resultando esta decisão no art.4º, nº1, l) como conhecemos hoje.
O Decreto-Lei nº 214-G/2015 entrou em vigor em setembro de 2016, o que nos leva à questão de saber a razão pela qual a matéria da alínea l) ter tido um prazo maior de vactio legis. Para Carlos Carvalho [2], a justificação prende-se com o facto de os tribunais ainda não estarem adaptados a esta nova matéria no seu âmbito de jurisdição. No meu entender, esta justificação faz todo o sentido, uma vez que apenas com a reforma de 2002/2004 é que aos tribunais administrativos e fiscais são atribuídas cada vez mais matérias e, consequentemente, mais litígios para decidir, pois até lá a maioria dos litígios era decidido junto dos tribunais judiciais.
Em conclusão, com este acórdão conseguimos entender que a introdução da alínea l) do art.4º, nº1 do ETAF, foi importante para a jurisdição administrativa atribuindo-lhe mais matérias e alargando a sua competência. No acórdão em causa, os tribunais administrativos acabaram por não ser os competentes porque a norma ainda não tinha entrado em vigor. No entanto, conseguimos perceber neste acórdão que a entrada desta norma em vigor mudou o contencioso administrativo, alargando o seu âmbito de jurisdição retirando algumas matérias do domínio dos tribunais judiciais que incidem sobre relações jurídico-administrativas que devem ser tratadas em sede de tribunal administrativo, como refere o art.212º, nº3 da Constituição da República Portuguesa.
[2]CARVALHO, Alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Comentário à revisão do ETAF e do CPTA, 2016, pp. 172
Bibliografia
CARVALHO, Carlos, Alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Comentário à revisão do ETAF e do CPTA, 2016
PAÇÃO, Jorge, Novidades em sede de jurisdição dos tribunais administrativos- em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº1 do ETAF, Comentário à revisão do ETAF e do CPTA, 2016.
ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016
Beatriz Martins do Vale,
Nº 61010
Comentários
Enviar um comentário