Âmbito
da jurisdição administrativa: o ilícito de mera ordenação social
Com a revisão
constitucional de 1989 confirmou-se a institucionalização plena da Justiça
Administrativa, passando os artigos 211 e 214 CRP (hoje 209 e 212,
respetivamente) a estabelecer que os tribunais administrativos e fiscais
constituem uma jurisdição própria, já não meramente facultativa (VASCO PEREIRA
DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª edição,
2013, pp. 199-200).
Para além da
constitucionalização formal dos tribunais administrativos e fiscais, a revisão
de 1989 introduziu na Constituição uma regra atinente ao âmbito da jurisdição
administrativa, dispondo o (então) art. 214/3 que “compete aos tribunais
administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que
tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais”. Face a este preceito, pergunta-se: qual o âmbito da
reserva constitucional da jurisdição administrativa? Só os tribunais
administrativos podem julgar questões de direito administrativo?
Seguindo o entendimento
do Professor Vieira de Andrade, esta norma apenas define um modelo típico,
podendo ser afastado pelo legislador ordinário, a quem é permitida a atribuição
pontual do julgamento de questões administrativas a outros tribunais, desde que
não se perca o “núcleo caracterizador” desse modelo (“A Justiça Administrativa”,
10ª edição, 2009, pp.105-106).
Só um entendimento
deste tipo permite sustentar algumas das opções tomadas pelo legislador do
ETAF, que subtraiu certas matérias de direito administrativo do âmbito da
jurisdição administrativa, como é o caso da impugnação de atos de aplicação de
coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social: segundo o art. 4/1 al. l)
ETAF, apenas se entra no campo da jurisdição administrativa quando os litígios
em causa sejam relativos a decisões de aplicação de coimas no âmbito do ilícito
de mera ordenação social por violação de normas em matéria de urbanismo.
Ainda que o legislador
tenha optado por esta “solução de meio-termo” (expressão usada pelo Professor
Mário Aroso de Almeida), o ilícito de mera ordenação social não deixa de assumir
natureza administrativa, sendo isso reconhecido até pela doutrina jus penalista
(FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal - Parte Geral - Tomo I-
Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, 2ª edição, 2007, p.157).
Assim sendo, o que motivou o legislador a não incluir esta matéria no âmbito da
jurisdição administrativa?
Conforme relata o
Professor Mário Aroso de Almeida (“Manual de Processo Administrativo”, 2ª
edição, 2016, p. 172), aquando da criação do ilícito de mera ordenação social,
em 1979, a impugnação das decisões de aplicação de coimas foi reservada aos
tribunais judiciais devido à escassez de juízes e tribunais administrativos. Passados
36 anos, na revisão do ETAF de 2015, até o próprio legislador assumiu o caráter
administrativo do ilícito de mera ordenação social, ainda assim não atribuindo
competência genérica aos tribunais administrativos nesta matéria, mais uma vez,
tendo em conta as insuficiências da rede de tribunais administrativos (que
foram reconhecidas pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, em parecer sobre o projecto de revisão do CPTA e do ETAF),
estabelecendo-se a solução hoje vigente na alínea l) do número 1 do artigo 4
ETAF.
Concluindo, o caso específico
do ilícito de mera ordenação social ilustra bem as deficiências da estrutura de
tribunais administrativos que, décadas após a revisão constitucional de 1989,
continuam a existir. Para além disso, mesmo que esta solução legislativa não
afronte o art. 212/3 CRP, por este não consagrar uma reserva absoluta de
jurisdição aos tribunais administrativos, tal não significa que a subtração de
matérias de direito administrativo (por motivos alheios ao direito administrativo)
à sua competência seja o ideal, já que esta realidade obsta à afirmação plena
do Contencioso Administrativo.
Manuel Padre-Eterno
Nº 60909
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