A Reserva Absoluta da Jurisdição Administrativa e a Emancipação do Contencioso Administrativo: O Percurso de uma “Vida Adulta” a Caminho da Régie, Monopólio e Liberdade?


 

A evolução histórica do Direito Administrativo português – encetada com o “pecado original do contencioso administrativo [a ligação entre as tarefas de administrar e julgar]”[1], modificada, no século XX, com o corte do “cordão umbilical que ligava a Administração à Justiça”[2] e a consequente separação entre poder administrativo e poder jurisdicional – culminou, após a revisão constitucional de 1989 – momento de entrada em vigor da “Constituição da Justiça Administrativa”[3] e de correcção de alguns “traumas de infância”, tais como a definição positiva do âmbito da jurisdição administrativa[4] e o “reforço das estruturas da jurisdição administrativa, de modo a poder cobrir todo o universo de litígios jurídico-administrativos[5] – e, sobretudo, após a reforma de 2002 – por via da qual o legislador administrativo adaptou e densificou as alterações anteriormente realizadas pelo legislador constitucional, em  matéria de jurisdição administrativa [mormente, de responsabilidade civil extracontratual do Estado (Artigo 4.º/1/alíneas f), g) e h)/Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante, “ETAF”) e de fiscalização de actos materialmente administrativos praticados por entidades de natureza privada ou por órgãos não integrados na AP (Artigo 4.º/1/alíneas c) e d)/ETAF)][6] – na existência de dualidade de jurisdições. 

Com efeito, no contexto do “Estado Pós-Social”[7] e da redefinição do Direito Administrativo, não enquanto “direito da Administração e dos seus órgãos, mas o dos direitos individuais nas relações administrativas”[8], a emancipação dos tribunais administrativos [em cujo topo reside o Supremo Tribunal Administrativo (doravante, “STA”) – Artigos 209.º/1/alínea b) e 212.º/1 e 3/CRP] face aos tribunais ordinários (encabeçados pelo Supremo Tribunal de Justiça – Artigos 209.º/1/alínea a) e 210.º/CRP), ficou vertida na actual redacção do Artigo 212.º/3/Constituição da República Portuguesa (doravante, “CRP”).

Não obstante os esforços desenvolvidos pela doutrina de justificar “(...) a existência de uma jurisdição administrativa independente da jurisdição comum (...) no contexto da autêntica “revolução coperniciana” por que a justiça administrativa tem passado nas últimas décadas.”[9] – com fundamento na diferença entre justiça objectiva (a administrativa) e subjectiva (a ordinária), ou no princípio da especialização, corolário da separação de poderes (Artigo 111.º/CRP) –, afigura-se, ainda, de dificuldade particularmente acentuada delinear as fronteiras exactas que separam a jurisdição administrativa e fiscal da jurisdição comum. 

Efectivamente, os idoneamente identificados “fenómenos de interpenetração crescente entre o direito público e o direito privado ou entre o direito administrativo e o direito privado”[10] ou, até mesmo, de autêntica “fuga para o Direito Privado”[11], suscitam uma panóplia de problemas atinentes à “definição material de justiça administrativa”[12] e, em particular, ao alcance e extensão da alínea o) do Artigo 4.º/1/ETAF: terão as “obras de imaginação (...) [ou] tratados de patologia”[13] usados pelo legislador administrativo, ao longo do tempo, sido úteis para a ultrapassagem definitiva dos “traumas de infância” do Direito Administrativo e para a “aquisição pelo contencioso de plena jurisdição da natureza de contencioso por definição ou contencioso “próprio””[14]-[15]?

Considerando as situações em que “as pessoas colectivas públicas actuam como os particulares, socorrendo-se dos meios ou formas de actuação jurídica que o Direito Privado regula, para alcançarem os resultados ou efeitos práticos que desejem ver produzidos (...) [e as] não poucas relações jurídicas privadas só se podem constituir, modificar ou extinguir com a intervenção da administração”[16] e atendendo ao disposto nas alíneas d) e h) do Artigo 4.º/1/ETAF – demonstrações indeléveis dos fenómenos de crescente “publicização da vida privada” e, inversamente, de “privatização da própria Administração Pública”, materializados nas “tentativas várias de construção de um regime jurídico misto para essas novas áreas da actividade administrativa.”[17] –, não se afigura viável asseverar a existência de uma reserva absoluta dos tribunais administrativos (Professores Aroso de Almeida, Gomes Canotilho e Vital Moreira)[18] ou considerar que a “a jurisdição administrativa-regra”, no quadro do Direito Público, apenas admite desvios quando esteja em causa a tutela efectiva mais idónea de direitos fundamentais dos particulares, em virtude das insuficiências estruturais e institucionais da organização judiciária administrativa (Professor Freitas do Amaral)[19]. Admitindo, pois, tal como o Professor Afonso Queiró, que a AP actua, em planos diversos, enquanto “administração pública dos direitos privados ou dos interesses privados”[20], não se pode senão considerar que está em voga “um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo [de jurisdição administrativa]”[21], em conformidade com as posições adoptadas pelo STA, pelo STJ  e pelo Tribunal dos Conflitos.

Assim, a preocupação do legislador em estender o âmbito da jurisdição administrativa, através da introdução da alínea o) no n.º 1 do artigo 4.º/ETAF, não é desprovida de significado material, tendo, inclusivamente, dupla face: se, por um lado, a jurisdição administrativa se abstraiu dos seus “traumas infantis”, abrangendo todos os litígios que envolvam o exercício de funções de natureza administrativa, por entidades públicas ou privadas (“dimensão mínima da reserva de jurisdição administrativa”[22]), também é possível arguir que se inserem no âmbito da jurisdição administrativa “todas as questões jurídico-públicas não confiadas expressamente a outra jurisdição que tenha por atribuição especial o controlo da validade de actos de outras funções do Estado.”[23]-[24] (similarmente ao que sucede no ordenamento jurídico alemão) e, bem assim, as “situações de fronteira em que há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes”[25] – mormente, no âmbito do ilícito contraordenacional, por violação de normas urbanísticas[26], da contratação pública[27], da celebração de contratos emprego-inserção[28] e de trabalho[29], da responsabilidade civil extracontratual (por danos resultantes de obra pública[30]; por ofensa à dignidade e bom nome[31]) e da responsabilidade civil de instituições universitárias[32], entre outros.

Em suma, afigura-se indubitável a plena emancipação do Contencioso Administrativo; problemático será, porém, se o legislador almejar extravasar as “zonas vermelhas” [33] inacessíveis à jurisdição administrativa, previstas no artigo 4.º/3 e 4/ETAF, num contexto histórico em que cada vez mais Os riscos, e pois os prejuízos, da administração de Estado estão evidentemente na razão directa da extensão com que essa administração intervém na vida social espontânea.”[34]– pois que, tal como no caso de Alice e Mattia, em La Solitudine dei Numeri Primi, também os “traumas da infância” do Direito Administrativo podem vir a ressurgir, ao longo da sua conturbada “vida adulta”.

 

 

Bibliografia:


A. Queiró, Lições de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1976.

C. Amado Gomes, O Artigo 4.º do ETAF: Um Exemplo de “Creeping Jurisdiction”?, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, Coimbra Editora, 2004.

D. Freitas do Amaral e M. Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 1ª Edição, Coimbra, Almedina, 2002.

F. Pessoa, Régie, Monopólio, Liberdade, 1926, in https://maisliberdade.pt/site/assets/files/2046/regie-_monopolio-_liberdade.pdf.

G. Papini, Gog, Lisboa, Edição Livros do Brasil.

J. A. Santos et. al.Novo Contencioso Administrativo Anotado 2002: Novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: Novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 1ª Edição, Lisboa, Dislivro.

J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 16ª Edição, Coimbra, Almedina, 2018.

J. Vieira de Andrade, Âmbito e Limites da Jurisdição Administrativa, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 22, Julho/Agosto 2000.

J. M. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, I, 1ª Edição, Lisboa, Lex Editora, 2005.

M. J. Estorninho, A Fuga para o Direito Privado – Contributo Para o Estudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública, Coimbra, Almedina, 1996.

P. Velez, O Fundamento da Jurisdição Administrativa (Edição Corrigida), Lisboa, Setembro de 2003, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito.

V. Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de Uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, Coimbra, Almedina, 1ª Edição (Reimp.), 2005.

V. Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição (reimp.), Lisboa, Almedina,  2013.

V. Pereira da Silva, Em Defesa da Autonomia da Jurisdição Administrativa e Fiscal [Depoimentos], Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE), in https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/2018/11/Book_Depoimentos.pdf .

 

                                                                                                                    Manuel Barreto Gaspar, n.º 60830

[1] V. Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares – Esboço de Uma Teoria Subjectivista do Recurso Directo de Anulação, Coimbra, Almedina, 1ª Edição (Reimp.), 2005, p. 135.

[2] Pereira da Silva, Para um Contencioso, p. 139.

[3] V. Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2ª Edição (reimp.),Lisboa, Almedina,  2013, p. 233.

[4] D. Freitas do Amaral e M. Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 1ª Edição, Coimbra, Almedina, 2002, p. 23.

[5] Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas, p. 24.

[6] J. A. Santos et. al., Novo Contencioso Administrativo Anotado 2002: Novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: Novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 1ª Edição, Lisboa, Dislivro, pp. 29 e ss.

[7] V. Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã, pp. 150 e ss.

[8] Pereira da Silva, Para um Contencioso, p. 63.

[9] P. Velez, O Fundamento da Jurisdição Administrativa (Edição Corrigida), Lisboa, Setembro de 2003, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Direito, p. 7, parafraseando V. Pereira da Silva, Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo, Coimbra, 2000, p. 90.

[10] Velez, O Fundamento, p. 39.

[11] Expressão adoptada pelo Professor Fritz Fleiner e acolhido, no seio da doutrina portuguesa, através dos ensinamentos da Professora Maria João Estorninho. Cf. M. J. Estorninho, A Fuga para o Direito Privado – Contributo Para o Estudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública, Coimbra, Almedina, 1996, p. 11.

[12] J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 16ª Edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 96.

[13] Fiéis aos ensinamentos do Professor Vasco Pereira da Silva, adoptamos a presente expressão da autoria de Giovanni Papini, numa das suas mais célebres obras, Gog. Cf. G. Papini, Gog, Lisboa, Edição Livros do Brasil, p. 64.

[14] J. M. Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, I, 1ª Edição, Lisboa, Lex Editora, 2005, p. 599.

[15] Contrariamente ao sucedido nos Estados europeus de matriz continental, no quadro da realidade jurídica anglo-saxónica, a autonomização dos tribunais, em matéria administrativa, é limitada. Cf. V. Pereira da Silva, Em Defesa da Autonomia da Jurisdição Administrativa e Fiscal [Depoimentos], Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (CEDIPRE), in https://www.fd.uc.pt/cedipre/wp-content/uploads/2018/11/Book_Depoimentos.pdf, pp 77-79.

[16] A. Queiró, Lições de Direito Administrativo, I, Coimbra, 1976, pp. 185-189.

[17] Estorninho, A Fuga, p. 340.

[18] Segundo estes autores, as relações jurídico-administrativas materiais apenas podem ser objecto de apreciação pelos tribunais judiciais, a título estrictamente excepcional, tal como, por exemplo, no seio do contencioso eleitoral, conforme resulta do disposto no Artigo 4.º/1/alínea m)/in fine/ETAF, ou em caso de estado de necessidade. Cf. Vieira de Andrade, A Justiça, p. 99, notas 168 e 169.

[19] “Se a jurisdição administrativa for dotada dos meios que lhe permitam desempenhar cabalmente a sua função, sem diminuição de garantias e da efectividade das decisões, nada parece justificar a introdução de desvios ao seu poder [dos tribunais administrativos] de dirimir os litígios de natureza administrativa.”. Cf. Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas, p. 23.

[20] Queiró, Lições, I, p. 189.

[21] Vieira de Andrade, op. cit., pp. 100-101.

[22] C. Amado Gomes, O Artigo 4.º do ETAF: Um Exemplo de “Creeping Jurisdiction”?, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, Coimbra Editora, p. 407.

[23] Amado Gomes, O Artigo 4.º do ETAF, p. 408.

[24] Dizemo-lo sem deixar em oblívio que a jurisdição administrativa detém carácter especial ou subsidiário face a matérias enquadráveis no âmbito da jurisdição comum, mas geral face às jurisdições constitucional, internacional e euro-comunitária, financeira e arbitral. Cfr. Vieira de Andrade, A Justiça, pp. 103 e ss. e Amado Gomes, O Artigo 4.º do ETAF, p. 409.

[25] Vieira de Andrade, op. cit., p. 100.

[26] Ac. STA N.º 04/2020 (Uniformização de Jurisprudência), de 07.05.2020 (Proc. N.º 19/19.8BESNT-A), in http://www.dgsi.pt/jsta.nsf?OpenDatabase.

[27] Ac. T. dos Conflitos, de 19.05.2021 (Proc. N.º 04/20), in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf?OpenDatabase.

[28] Acs. T. dos Conflitos, de 05.05.2021 (Proc. N.º 01064/18.6BEBRG-A.S1; e de 03.11.2020 (Proc. N.º 044/19), in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf?OpenDatabase.

[29] Ac. TCA Norte, de 09.04.2021 (Proc. N.º 0117.19.8BEMDL), in http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf?OpenDatabase.

[30] Ac. T. dos Conflitos, de 15.03.2018 (Proc. N.º 062/17), in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf?OpenDatabase.

[31] Ac. TR Porto, de 12.10.2006 (Proc. N.º 0634770), in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase.

[32] Ac. T. dos Conflitos, de 25.06.2020 (Proc. N.º 019/19), in http://www.dgsi.pt/jcon.nsf?OpenDatabase.

[33] Aquelas que abrangem “questões de direito privado em que não intervenha a Administração (ou entes por ela formados), nem tenham a ver com o exercício da função administrativa (...) [e] questões que consistiam na impugnação directa de actos típicos de outras funções estaduais”. J. Vieira de Andrade, Âmbito e Limites da Jurisdição Administrativa, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 22, Julho/Agosto 2000, p. 12.

[34] F. Pessoa, Régie, Monopólio e Liberdade, 1926, p. 3, in https://maisliberdade.pt/site/assets/files/2046/regie-_monopolio-_liberdade.pdf.

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